SÃO PIO X CONTRA A DEMOCRACIA (Carta Notre Charge Apostolique sur le Sillon)

23/09/2024

Tradução do PDF: "Saint Pie X Lettre sur le Sillon" do site virgo-maria.org

ACTA APOSTOLICAE SEDIS

COMMENTARIUM OFFICIALE

ACTA PII PP. X

CARTA AOS ARCEBISPOS E BISPOS FRANCESES

A NOSSOS AMADOS FILHOS

PIERRE HECTOR COULLIÉ, CARDEAL PRESBÍTERO DA SANTA IGREJA ROMANA, ARCEBISPO DE LYON,

LOUIS HENRI LUÇON, CARDEAL PRESBÍTERO DA SANTA IGREJA ROMANA, ARCEBISPO DE REIMS,

PAULIN PIERRE ANDRIEU, CARDEAL PRESBÍTERO DA SANTA IGREJA ROMANA, ARCEBISPO DE BORDEAUX,

E A TODOS OS NOSSOS OUTROS VENERÁVEIS IRMÃOS OS ARCEBISPOS E BISPOS FRANCESES

PIO X PAPA

VENERÁVEIS IRMÃOS SAUDAÇÃO E BÊNÇÃO APOSTÓLICA


1 Nossa responsabilidade apostólica nos impõe o dever de zelar pela pureza da fé e pela integridade da disciplina católica, de preservar os fiéis dos perigos do erro e do mal, especialmente quando o erro e o mal são apresentados em uma linguagem cativante, que, encobrindo a imprecisão das ideias e a ambiguidade das expressões com o fervor do sentimento e a sonoridade das palavras, pode inflamar os corações para causas sedutoras, mas funestas. Tais foram outrora as doutrinas dos pretensos filósofos do século XVIII, as da Revolução e do liberalismo tantas vezes condenadas; tais são ainda hoje as teorias do Sillon, que, sob suas aparências brilhantes e generosas, muitas vezes carecem de clareza, lógica e verdade, e, nesse aspecto, não se enquadram no gênio católico e francês.

2 Hesitamos por muito tempo, Veneráveis Irmãos, em expressar publicamente e solenemente nosso pensamento sobre o Sillon. Foi necessário que as vossas preocupações se somassem às nossas para nos decidir a fazê-lo. Pois amamos a corajosa juventude alistada sob a bandeira do Sillon, e acreditamos que ela é digna, em muitos aspectos, de elogio e admiração. Amamos seus líderes, em quem nos agradamos em reconhecer almas elevadas, superiores às paixões vulgares e animadas do mais nobre entusiasmo pelo bem. Vós os vistes, Veneráveis Irmãos, penetrados de um sentimento muito vivo de fraternidade humana, indo ao encontro daqueles que trabalham e sofrem para os elevar, sustentados em seu devotamento por seu amor a Jesus Cristo e pela prática exemplar da religião.

3 Era logo após a memorável Encíclica de nosso predecessor de feliz memória, Leão XIII, sobre a condição dos trabalhadores. A Igreja, pela boca de seu chefe supremo, havia derramado sobre os humildes e pequenos todas as ternuras de seu coração materno, e parecia desejar ardentemente defensores sempre mais numerosos para a restauração da ordem e da justiça em nossa sociedade perturbada. Não vieram os fundadores do Sillon, no momento oportuno, colocar ao seu serviço tropas jovens e crentes para a realização de seus desejos e esperanças? E, de fato, o Sillon ergueu entre as classes trabalhadoras o estandarte de Jesus Cristo, o sinal da salvação para os indivíduos e as nações, alimentando sua atividade social nas fontes da graça, impondo o respeito pela religião nos ambientes menos favoráveis, acostumando os ignorantes e os ímpios a ouvir falar de Deus, e frequentemente, em conferências contraditórias, diante de uma audiência hostil, surgindo, despertados por uma questão ou um sarcasmo, para proclamar alta e orgulhosamente sua fé. Eram os tempos áureos do Sillon; este é o seu lado belo, que explica os encorajamentos e aprovações que o Episcopado e a Santa Sé não lhe pouparam enquanto esse fervor religioso pôde velar o verdadeiro caráter do movimento sillonista.

4 Pois, é preciso dizer, Veneráveis Irmãos, nossas esperanças foram, em grande parte, frustradas. Chegou um dia em que o Sillon revelou, para os olhos perspicazes, tendências inquietantes. O Sillon se desviava. Poderia ser de outra forma? Seus fundadores, jovens, entusiastas e confiantes em si mesmos, não estavam suficientemente armados de ciência histórica, de filosofia sã e de teologia robusta para enfrentar sem perigo os difíceis problemas sociais para os quais eram atraídos por sua atividade e seu coração, e para se precaverem, no campo da doutrina e da obediência, contra as infiltrações liberais e protestantes.

5 Os conselhos não lhes faltaram; as admoestações vieram após os conselhos; mas tivemos a dor de ver tanto os avisos quanto as repreensões deslizarem sobre suas almas evasivas e permanecerem sem efeito. As coisas chegaram a tal ponto que trairíamos nosso dever se continuássemos a guardar silêncio. Devemos a verdade aos nossos queridos filhos do Sillon que um generoso ardor levou por um caminho tão falso quanto perigoso. Devemos essa verdade a um grande número de seminaristas e sacerdotes que o Sillon afastou, senão da autoridade, pelo menos da direção e da influência de seus bispos; devemos, finalmente, à Igreja, onde o Sillon semeia a divisão e compromete os interesses.

6 Em primeiro lugar, é conveniente censurar severamente a pretensão do Sillon de escapar à direção da autoridade eclesiástica. Os líderes do Sillon, de fato, alegam que evoluem em um terreno que não é o da Igreja; que perseguem apenas interesses da ordem temporal e não da ordem espiritual; que o Sillonista é simplesmente um católico dedicado à causa das classes trabalhadoras, às obras democráticas, e que encontra nas práticas de sua fé a energia de seu devotamento; que, nem mais nem menos que os artesãos, os lavradores, os economistas e os políticos católicos, ele permanece sujeito às regras da moral comum a todos, sem depender, nem mais nem menos que eles, de uma maneira especial, da autoridade eclesiástica.

7 A resposta a esses subterfúgios é muito fácil. Quem acreditará, de fato, que os Sillonistas católicos, que os sacerdotes e seminaristas alistados em suas fileiras, têm em vista, em sua atividade social, apenas os interesses temporais das classes trabalhadoras? Pensamos que seria uma injúria afirmar isso. A verdade é que os líderes do Sillon se proclamam idealistas irreconciliáveis, que pretendem elevar as classes trabalhadoras elevando primeiro a consciência humana, que têm uma doutrina social e princípios filosóficos e religiosos para reconstruir a sociedade em um novo plano, que têm uma concepção especial da dignidade humana, da liberdade, da justiça e da fraternidade, e que, para justificar seus sonhos sociais, recorrem ao Evangelho interpretado à sua maneira e, o que é mais grave ainda, a um Cristo desfigurado e diminuído. Além disso, essas ideias são ensinadas em seus círculos de estudo, são inculcadas em seus camaradas; elas são transmitidas em suas obras. Eles são, portanto, verdadeiros professores de moral social, cívica e religiosa; e, por mais modificações que possam introduzir na organização do movimento sillonista, temos o direito de dizer que o objetivo do Sillon, seu caráter, sua ação pertencem ao domínio moral, que é o domínio próprio da Igreja, e que, em consequência, os Sillonistas se iludem quando acreditam evoluir em um terreno cujos limites coincidem com o fim dos direitos do poder doutrinal e diretivo da autoridade eclesiástica.

8 Se suas doutrinas estivessem isentas de erro, já seria uma falta muito grave à disciplina católica subtrair-se obstinadamente à direção daqueles que receberam do Céu a missão de guiar os indivíduos e as sociedades no caminho certo da verdade e do bem. Mas o mal é mais profundo, já o dissemos: o Sillon, levado por um amor mal-entendido pelos fracos, deslizou para o erro.

9 Com efeito, o Sillon propõe a elevação e a regeneração das classes trabalhadoras. Ora, sobre essa matéria, os princípios da doutrina católica são fixos, e a história da civilização cristã está aí para atestar sua benéfica fecundidade. Nosso predecessor, de feliz memória, os lembrou em páginas magistrais, que os católicos ocupados com questões sociais devem estudar e sempre manter diante dos olhos. Ele ensinou, em particular, que a democracia cristã deve "manter a diversidade das classes, que é certamente o próprio de uma cidade bem constituída, e querer para a sociedade humana a forma e o caráter que Deus, seu autor, lhe imprimiu" . Ele estigmatizou "uma certa democracia que vai até o grau de perversidade de atribuir a soberania na sociedade ao povo e de perseguir a supressão e o nivelamento das classes". Ao mesmo tempo, Leão XIII impôs aos católicos um programa de ação, o único programa capaz de recolocar e manter a sociedade em suas bases cristãs seculares. Ora, o que fizeram os líderes do Sillon? Não apenas adotaram um programa e um ensino diferentes dos de Leão XIII (o que já seria singularmente audacioso da parte de leigos que assim se colocam, concorrendo com o Soberano Pontífice, como diretores da atividade social na Igreja); mas eles rejeitaram abertamente o programa traçado por Leão XIII e adotaram um diametralmente oposto; além disso, eles rejeitam a doutrina lembrada por Leão XIII sobre os princípios essenciais da sociedade, colocam a autoridade no povo ou quase a suprimem, e tomam como ideal a realizar o nivelamento das classes. Eles vão, portanto, contra a doutrina católica, em direção a um ideal condenado.

10 Sabemos bem que eles se vangloriam de elevar a dignidade humana e a condição demasiado desprezada das classes trabalhadoras, de tornar justas e perfeitas as leis do trabalho e as relações entre o capital e os trabalhadores, finalmente de fazer reinar na terra uma maior justiça e mais caridade, e, através de movimentos sociais profundos e fecundos, de promover na humanidade um progresso inesperado. E, certamente, não censuramos esses esforços que seriam, em todos os pontos, excelentes, se os Sillonistas não esquecessem que o progresso de um ser consiste em fortalecer suas faculdades naturais com novas energias e em facilitar o jogo de sua atividade dentro do quadro e de acordo com as leis de sua constituição, e que, ao contrário, ferindo seus órgãos essenciais, rompendo o quadro de sua atividade, não se conduz o ser ao progresso, mas à morte. No entanto, é isso que eles querem fazer com a sociedade humana; é seu sonho mudar suas bases naturais e tradicionais, e prometer uma cidade futura edificada sobre outros princípios, que ousam declarar mais fecundos, mais benéficos do que os princípios sobre os quais repousa a cidade cristã atual.

11 Não, Veneráveis Irmãos, – é preciso lembrar com vigor nestes tempos de anarquia social e intelectual em que cada um se coloca como doutor e legislador, – não se construirá a cidade de outra forma que Deus não a construiu; não se edificará a sociedade, se a Igreja não lançar as bases e não dirigir os trabalhos; não, a civilização não precisa ser inventada, nem a cidade nova ser construída nas nuvens. Ela foi, ela é; é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de instaurá-la e restaurá-la continuamente sobre seus fundamentos naturais e divinos contra os ataques sempre renascentes da utopia malsã, da revolta e da impiedade: omnia instaurare in Christo.

12 E para que não nos acusem de julgar muito sumariamente e com uma severidade injustificada as teorias sociais do Sillon, queremos recordar os pontos essenciais.

13 O Sillon tem a nobre preocupação com a dignidade humana. Mas essa dignidade, ele a entende à maneira de certos filósofos dos quais a Igreja está longe de se orgulhar. O primeiro elemento dessa dignidade é a liberdade, entendida no sentido de que, exceto em matéria de religião, cada homem é autônomo. Desse princípio fundamental, ele tira as seguintes conclusões: Hoje, o povo está sob a tutela de uma autoridade distinta dele, deve se libertar: emancipação política. Está sob a dependência de patrões que, detendo seus instrumentos de trabalho, o exploram, o oprimem e o rebaixam; deve sacudir seu jugo: emancipação econômica. Finalmente, é dominado por uma casta chamada dirigente, cujo desenvolvimento intelectual lhe assegura uma preponderância indevida na direção dos assuntos; deve se subtrair ao seu domínio: emancipação intelectual. O nivelamento das condições sob esses três aspectos estabelecerá entre os homens a igualdade, e essa igualdade é a verdadeira justiça humana. Uma organização política e social fundada nessa dupla base, a liberdade e a igualdade (às quais em breve se juntará a fraternidade), é o que eles chamam de Democracia.

14 No entanto, a liberdade e a igualdade constituem apenas o lado, por assim dizer, negativo. O que faz propriamente e positivamente a Democracia é a participação mais ampla possível de cada um no governo da coisa pública. E isso compreende um triplo elemento, político, econômico e moral.

15 Primeiro, na política, o Sillon não abole a autoridade; ele a considera, ao contrário, necessária; mas deseja compartilhá-la, ou, melhor dizendo, multiplicá-la de tal forma que cada cidadão se tornará uma espécie de rei. A autoridade, é verdade, emana de Deus, mas reside primordialmente no povo e dele se desprende por via de eleição ou, melhor ainda, de seleção, sem por isso deixar o povo e se tornar independente dele; ela será exterior, mas apenas em aparência; na realidade, será interior, porque será uma autoridade consentida.

16 Guardadas as devidas proporções, o mesmo acontecerá na ordem econômica. Subtraído a uma classe particular, o patronato será tão bem multiplicado que cada trabalhador se tornará uma espécie de patrão. A forma chamada a realizar esse ideal econômico não é, afirma-se, a do socialismo; é um sistema de cooperativas suficientemente multiplicadas para provocar uma concorrência fecunda e para salvaguardar a independência dos trabalhadores que não estarão acorrentados a nenhuma delas.

17 Aqui está agora o elemento principal, o elemento moral. Como a autoridade, vimos, é muito reduzida, é necessária uma outra força para supri-la e para opor uma reação permanente ao egoísmo individual. Este novo princípio, esta força, é o amor do interesse profissional e do interesse público, ou seja, do próprio fim da profissão e da sociedade. Imaginem uma sociedade onde na alma de cada um, junto com o amor inato pelo bem individual e pelo bem familiar, reinasse o amor pelo bem profissional e pelo bem público; onde na consciência de cada um esses amores se subordinassem de tal maneira que o bem superior sempre prevalecesse sobre o bem inferior, essa sociedade não poderia quase prescindir da autoridade, e não apresentaria o ideal da dignidade humana, cada cidadão tendo uma alma de rei, cada trabalhador uma alma de patrão. Arrancado à estreiteza de seus interesses privados e elevado até os interesses de sua profissão, e mais alto, até os da nação inteira, e mais alto ainda, até os da humanidade (pois o horizonte do Sillon não se limita às fronteiras da pátria, estende-se a todos os homens até os confins do mundo), o coração humano, ampliado pelo amor ao bem comum, abraçaria todos os camaradas da mesma profissão, todos os compatriotas, todos os homens. E eis a grandeza e a nobreza humanas ideais realizadas pela célebre trilogia: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.

18 Ora, esses três elementos, político, econômico e moral, estão subordinados uns aos outros, e é o elemento moral, como dissemos, que é o principal. Com efeito, nenhuma democracia política é viável, se não tiver raízes profundas na democracia econômica. Por sua vez, nenhuma das duas é possível, se não se enraizar em um estado de espírito em que a consciência se veja investida de responsabilidades e energias morais proporcionadas. Mas suponham esse estado de espírito, assim feito de responsabilidade consciente e de forças morais, a democracia econômica surgirá naturalmente como tradução em atos dessa consciência e dessas energias; e da mesma forma, e pelo mesmo caminho, do regime corporativo emergirá a democracia política; e a democracia política e econômica, uma sustentando a outra, se encontrarão fixadas na própria consciência do povo sobre bases inabaláveis.

19 Tal é, em resumo, a teoria, poderia se dizer o sonho, do Sillon, e é a isso que tende seu ensino e o que ele chama de educação democrática do povo, ou seja, levar ao máximo a consciência e a responsabilidade cívica de cada um, das quais decorrerão a democracia econômica e política, e o reinado da justiça, da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

20 Esta rápida exposição, Veneráveis Irmãos, já vos mostra claramente o quanto tínhamos razão em dizer que o Sillon opõe doutrina à doutrina, que constrói sua cidade sobre uma teoria contrária à verdade católica e que distorce as noções essenciais e fundamentais que regulam as relações sociais em toda sociedade humana. Esta oposição se destacará ainda mais nas considerações seguintes.

Erros sobre a liberdade, a autoridade e a obediência

21 O Sillon coloca primordialmente a autoridade pública no povo, de quem ela deriva depois para os governantes, de tal forma, no entanto, que ela continua a residir nele. Ora, Leão XIII condenou formalmente essa doutrina em sua encíclica "Diuturnum illud" sobre o Principado político, onde diz: "Muitos modernos, seguindo as pegadas daqueles que, no século passado, se autodenominaram filósofos, declaram que todo poder vem do povo; que, em consequência, aqueles que exercem o poder na sociedade não o exercem como sua própria autoridade, mas como uma autoridade que lhes foi delegada pelo povo e sob a condição de que possa ser revogada pela vontade do povo de quem a receberam. Todo contrário é o sentimento dos católicos que fazem derivar o direito de comandar de Deus, como de seu princípio natural e necessário"1. Sem dúvida, o Sillon faz descer de Deus essa autoridade que ele coloca primeiro no povo, mas de tal maneira que "ela sobe de baixo para cima, enquanto que na organização da Igreja o poder desce de cima para baixo"2. Mas além de ser anormal que a delegação suba, já que é de sua natureza descer, Leão XIII refutou de antemão essa tentativa de conciliação da doutrina católica com o erro do filosofismo. Pois ele prossegue: "Importa observar aqui que aqueles que presidem ao governo da coisa pública podem, em certos casos, ser eleitos pela vontade e julgamento da multidão, sem repugnância nem oposição à doutrina católica. Mas se essa escolha designa o governante, ela não lhe confere a autoridade de governar; ela não delega o poder, ela designa a pessoa que será investida dele"3.

22 Além disso, se o povo permanece o detentor do poder, o que se torna a autoridade? Uma sombra, um mito; não há mais lei propriamente dita, não há mais obediência. O Sillon reconheceu isso; pois, de fato, ao reivindicar, em nome da dignidade humana, a tríplice emancipação política, econômica e intelectual, a cidade futura à qual ele trabalha não terá mais mestres nem servos; os cidadãos serão todos livres, todos camaradas, todos reis. Uma ordem, um preceito seria um atentado à liberdade, a subordinação a qualquer superioridade seria uma diminuição do homem, a obediência uma decadência. É assim, Veneráveis Irmãos, que a doutrina tradicional da Igreja nos representa as relações sociais na cidade, mesmo a mais perfeita possível? Toda sociedade de criaturas independentes e desiguais por natureza não precisa de uma autoridade que dirija sua atividade para o bem comum e que imponha sua lei? E se na sociedade houver seres perversos (e sempre haverá), a autoridade não deverá ser tanto mais forte quanto mais ameaçador for o egoísmo dos maus? Além disso, pode-se dizer com uma sombra de razão que há incompatibilidade entre a autoridade e a liberdade, a menos que se tenha um conceito gravemente errado de liberdade? Pode-se ensinar que a obediência é contrária à dignidade humana e que o ideal seria substituí-la pela "autoridade consentida"? Será que o apóstolo São Paulo não tinha em vista a sociedade humana em todas as suas etapas possíveis, quando prescrevia aos fiéis que fossem submissos a toda autoridade? Será que a obediência aos homens enquanto representantes legítimos de Deus, ou seja, em última análise, a obediência a Deus, rebaixa o homem e o diminui abaixo de si mesmo? Será que o estado religioso, fundado na obediência, seria contrário ao ideal da natureza humana? Será que os santos, que foram os mais obedientes dos homens, eram escravos e degenerados? Será que, finalmente, podemos imaginar um estado social em que Jesus Cristo, voltando à terra, não daria mais o exemplo de obediência e não diria mais: "Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus"?

Erros do Sillon sobre igualdade e justiça

23 O Sillon, que ensina tais doutrinas e as põe em prática em sua vida interna, semeia, portanto, entre vossa juventude católica noções errôneas e funestas sobre autoridade, liberdade e obediência. O mesmo se dá em relação à justiça e à igualdade. Ele trabalha, diz ele, para realizar uma era de igualdade que seria, por si só, uma era de melhor justiça. Assim, para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, no mínimo, uma menor justiça! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e injustiça e subversivo de toda ordem social. Assim, apenas a democracia inaugurará o reinado da justiça perfeita! Não é isso uma injúria às outras formas de governo, que são, dessa forma, rebaixadas ao nível de governos de segunda escolha, impotentes? Ademais, o Sillon se depara novamente nesse ponto com o ensinamento de Leão XIII. Ele poderia ter lido na Encíclica já citada sobre o Principado político que "a justiça preservada, não é proibido aos povos darem a si mesmos o governo que mais corresponda ao seu caráter ou às instituições e costumes recebidos de seus antepassados"4; e a Encíclica alude às três formas bem conhecidas de governo. Portanto, ela supõe que a justiça é compatível com cada uma delas. E a Encíclica sobre a condição dos operários não afirma claramente a possibilidade de restaurar a justiça nas organizações atuais da sociedade, já que indica os meios para isso? Ora, sem dúvida, Leão XIII falava, não de uma justiça qualquer, mas da justiça perfeita. Ao ensinar, portanto, que a justiça é compatível com as três formas de governo conhecidas, ele ensinava que, nesse aspecto, a Democracia não goza de um privilégio especial. Os Sillonistas que pretendem o contrário, ou se recusam a ouvir a Igreja, ou formam para si mesmos um conceito de justiça e de igualdade que não é católico.

Erros do Sillon sobre fraternidade e caridade

24 O mesmo se aplica à noção de fraternidade, cuja base eles colocam no amor pelos interesses comuns ou, além de todas as filosofias e todas as religiões, na simples noção de humanidade, englobando assim no mesmo amor e numa tolerância igual todos os homens, com todas as suas misérias, tanto intelectuais e morais quanto físicas e temporais. Ora, a doutrina católica nos ensina que o primeiro dever da caridade não está na tolerância das convicções errôneas, por mais sinceras que sejam, nem na indiferença teórica ou prática em relação ao erro ou ao vício nos quais vemos nossos irmãos mergulhados, mas no zelo por sua melhoria intelectual e moral, não menos do que por seu bem-estar material. Essa mesma doutrina católica nos ensina também que a fonte do amor ao próximo se encontra no amor de Deus, pai comum e fim comum de toda a família humana, e no amor de Jesus Cristo, de quem somos membros a tal ponto que aliviar um infeliz é fazer o bem ao próprio Jesus Cristo. Todo outro amor é ilusão ou sentimento estéril e passageiro. Certamente a experiência humana está aí, nas sociedades pagãs ou laicas de todos os tempos, para provar que, em certos momentos, a consideração dos interesses comuns ou da similitude de natureza pesa muito pouco diante das paixões e cobiças do coração. Não, Veneráveis Irmãos, não há verdadeira fraternidade fora da caridade cristã que, por amor a Deus e a seu Filho Jesus Cristo, nosso Salvador, abraça todos os homens para aliviar a todos e para conduzi-los todos à mesma fé e à mesma felicidade celestial. Ao separar a fraternidade da caridade cristã assim entendida, a Democracia, longe de ser um progresso, constituiria um retrocesso desastroso para a civilização. Pois se quisermos chegar, e desejamos de toda a nossa alma, à maior soma de bem-estar possível para a sociedade e para cada um de seus membros pela fraternidade, ou como se diz ainda, pela solidariedade universal, é necessário a união dos espíritos na verdade, a união das vontades na moralidade, a união dos corações no amor de Deus e de seu Filho, Jesus Cristo. Ora, essa união só é realizável pela caridade católica, a qual, portanto, é a única que pode conduzir os povos na marcha do progresso rumo ao ideal da civilização.

Erro fundamental do Sillon: falsa ideia de dignidade humana

25 Finalmente, na base de todas as falsificações das noções sociais fundamentais, o Sillon coloca uma falsa ideia de dignidade humana. Segundo ele, o homem só será realmente homem, digno desse nome, no dia em que tiver adquirido uma consciência esclarecida, forte, independente, autônoma, capaz de prescindir de mestres, obedecendo apenas a si mesma e capaz de assumir e portar, sem falhas, as mais graves responsabilidades. Eis aí essas grandes palavras com as quais se exalta o sentimento do orgulho humano; um sonho que leva o homem, sem luz, sem guia e sem ajuda, pelo caminho da ilusão, onde, esperando o grande dia da plena consciência, ele será devorado pelo erro e pelas paixões. E esse grande dia, quando virá? A menos que se mude a natureza humana (o que não está no poder do Sillon), ele virá algum dia? Será que os santos, que elevaram a dignidade humana ao seu ápice, tinham essa dignidade? E os humildes da terra, que não podem subir tão alto, e que se contentam em traçar modestamente seu caminho, no lugar que a Providência lhes designou, cumprindo energicamente seus deveres na humildade, obediência e paciência cristã, não seriam dignos do nome de homens, eles a quem o Senhor um dia retirará de sua condição obscura para colocá-los no céu entre os príncipes de seu povo?

26 Paramos aqui nossas reflexões sobre os erros do Sillon. Não pretendemos esgotar o assunto, pois ainda haveria outros pontos igualmente falsos e perigosos sobre os quais chamar vossa atenção, por exemplo, sua maneira de entender o poder coercitivo da Igreja. Importa agora ver a influência desses erros sobre a conduta prática do Sillon e sobre sua ação social.

O espírito e os métodos do Sillon – supressão de toda hierarquia

27 As doutrinas do Sillon não permanecem no domínio da abstração filosófica. Elas são ensinadas à juventude católica e, mais ainda, busca-se vivê-las. O Sillon se vê como o núcleo da cidade futura; ele a reflete, portanto, o mais fielmente possível. De fato, não há hierarquia no Sillon. A elite que o dirige se destacou da massa por seleção, ou seja, impondo-se por sua autoridade moral e suas virtudes. A ela se entra livremente, assim como livremente se sai. Os estudos são realizados sem mestre, no máximo com um conselheiro. Os círculos de estudo são verdadeiras cooperativas intelectuais, onde cada um é ao mesmo tempo mestre e aluno. A camaradagem mais absoluta reina entre os membros e põe em contato total suas almas; daí, a alma comum do Sillon. Ele foi definido como "uma amizade". O próprio sacerdote, quando entra, rebaixa a eminente dignidade de seu sacerdócio, e, por um mais estranho reverso de papéis, se faz aluno, se coloca ao nível de seus jovens amigos e não é mais que um camarada.

Desconfiança em relação à autoridade da Igreja

28 Nessas práticas democráticas e nas teorias sobre a cidade ideal que as inspiram, reconheceis, Veneráveis Irmãos, a causa secreta dos desvios disciplinares que tantas vezes fostes obrigados a reprovar no Sillon. Não é de se surpreender que não encontraiis nos líderes e em seus camaradas assim formados, sejam eles seminaristas ou sacerdotes, o respeito, a docilidade e a obediência que vos são devidos, a vós e à vossa autoridade; que sentis da parte deles uma surda oposição, e que lamentais vê-los se subtrair totalmente, ou, quando são forçados pela obediência, se dedicarem com desgosto a obras não sillonistas. Vós sois o passado; eles são os pioneiros da civilização futura. Vós representais a hierarquia, as desigualdades sociais, a autoridade e a obediência: instituições envelhecidas, às quais suas almas, apaixonadas por outro ideal, não podem mais se submeter. Temos sobre esse estado de espírito o testemunho de fatos dolorosos, capazes de arrancar lágrimas; e não podemos, apesar de nossa longanimidade, nos defender de um justo sentimento de indignação. Pois o quê! Inspira-se em vossa juventude católica a desconfiança em relação à Igreja, sua mãe; ensina-se a ela que, durante dezenove séculos, ela não conseguiu ainda constituir a sociedade em suas verdadeiras bases; que ela não compreendeu as noções sociais de autoridade, liberdade, igualdade, fraternidade e dignidade humana; que os grandes bispos e grandes monarcas, que criaram e governaram gloriosamente a França, não souberam dar ao seu povo, nem a verdadeira justiça, nem a verdadeira felicidade, porque não tinham o ideal do Sillon!

29 O sopro da Revolução passou por aí, e podemos concluir que, se as doutrinas sociais do Sillon são errôneas, seu espírito é perigoso e sua educação funesta.

30 Mas, então, o que devemos pensar de sua ação na Igreja, ele cujo catolicismo é tão exigente que, por pouco mais, a menos que se abrace sua causa, seríamos, aos seus olhos, um inimigo interno do catolicismo e não entenderíamos nada do Evangelho e de Jesus Cristo? Acreditamos ser oportuno insistir nessa questão, porque é precisamente seu ardor católico que valeu ao Sillon, até estes últimos tempos, preciosos encorajamentos e ilustres sufrágios. Pois bem! Diante das palavras e dos fatos, somos obrigados a dizer que, em sua ação como em sua doutrina, o Sillon não satisfaz à Igreja.

A Igreja subordinada a um partido político

31 Em primeiro lugar, seu catolicismo só se acomoda com a forma de governo democrático, que ele considera ser a mais favorável à Igreja e praticamente se confunde com ela; ele subordina, portanto, sua religião a um partido político. Não precisamos demonstrar que o advento da democracia universal não importa para a ação da Igreja no mundo; já recordamos que a Igreja sempre deixou às nações o cuidado de se dar o governo que julgam mais vantajoso para seus interesses. O que queremos afirmar mais uma vez, após nosso predecessor, é que há erro e perigo em subordinar, por princípio, o catolicismo a uma forma de governo; erro e perigo que são tanto maiores quando se sintetiza a religião com um tipo de democracia cujas doutrinas são errôneas. Ora, este é o caso do Sillon; que, de fato, e por uma forma política especial, comprometendo a Igreja, divide os católicos, arranca a juventude e até mesmo sacerdotes e seminaristas da ação meramente católica e desperdiça, em pura perda, as forças vivas de uma parte da nação.

A Igreja deixada sem defesa no terreno político

32 E vede, Veneráveis Irmãos, uma surpreendente contradição. É precisamente porque a religião deve dominar todos os partidos, invocando esse princípio, que o Sillon se abstém de defender a Igreja atacada. Certamente, não é a Igreja que desceu à arena política; arrastaram-na para lá, tanto para mutilá-la quanto para despojá-la. O dever de todo católico não é, então, usar as armas políticas que tem em mãos para defendê-la, e também para forçar a política a permanecer em seu domínio e a ocupar-se da Igreja apenas para lhe devolver o que lhe é devido? Pois bem! Diante da Igreja assim violentada, muitas vezes se tem a dor de ver os Sillonistas cruzarem os braços, a menos que a defendê-la lhes seja vantajoso; vê-se que ditam ou apoiam um programa que em nenhum lugar e em nenhum grau revela o católico. Isso não impede que os mesmos homens, em plena luta política, sob o impacto de uma provocação, proclamem publicamente sua fé. O que significa isso, senão que há dois homens no Sillonista: o indivíduo que é católico; o Sillonista, o homem de ação, que é neutro.

Ação sillonista e Ação católica

33 Houve um tempo em que o Sillon, como tal, era formalmente católico. Em termos de força moral, ele só conhecia a força católica, e proclamava que a democracia seria católica ou não seria. Chegou um momento em que ele se reconsiderou. Deixou a cada um sua religião ou sua filosofia. Ele próprio cessou de se qualificar como católico, e à fórmula: "a democracia será católica", substituiu por esta outra: "a democracia não será anticatólica", assim como não será anti-judaica ou anti-budista. Foi a época do maior Sillon. Conclamaram-se para a construção da cidade futura todos os trabalhadores de todas as religiões e de todas as seitas. Só lhes pediram que abraçassem o mesmo ideal social, respeitassem todas as crenças e trouxessem um certo aporte de forças morais. Certamente, proclamavam, "os líderes do Sillon colocam sua fé religiosa acima de tudo. Mas podem eles tirar dos outros o direito de buscar sua energia moral onde podem? Em contrapartida, querem que os outros respeitem seu direito, de buscar essa energia na fé católica. Eles pedem, portanto, a todos aqueles que querem transformar a sociedade atual no sentido da democracia que não se afastem mutuamente por causa das convicções filosóficas ou religiosas que podem separá-los, mas que caminhem de mãos dadas, não renunciando às suas convicções, mas tentando demonstrar no campo das realidades práticas a excelência de suas convicções pessoais. Talvez nesse terreno de emulação entre almas apegadas a diferentes convicções religiosas ou filosóficas, a união possa se realizar"5. E ao mesmo tempo se declarou (como isso poderia acontecer?) que o pequeno Sillon católico seria a alma do grande Sillon cosmopolita.

34 Recentemente, o nome do maior Sillon desapareceu, e uma nova organização foi estabelecida, sem modificar, muito pelo contrário, o espírito e a essência das coisas "para colocar ordem no trabalho e organizar as diversas forças de atividade. O Sillon permanece sempre uma alma, um espírito, que se misturará aos grupos e inspirará sua atividade". E todos os novos grupos, tornados aparentemente autônomos: católicos, protestantes, livres-pensadores, são convidados a entrar em ação. "Os camaradas católicos trabalharão entre si, numa organização especial, para se instruírem e se educarem. Os democratas protestantes e livres-pensadores farão o mesmo do seu lado. Todos, católicos, protestantes e livres-pensadores terão em mente armar a juventude, não para uma luta fratricida, mas para uma generosa emulação no campo das virtudes sociais e cívicas"6.

35 Essas declarações e essa nova organização da ação sillonista suscitam reflexões muito graves.

36 Eis que é fundada por católicos uma associação interconfessional para trabalhar na reforma da civilização, uma obra religiosa em primeiro lugar; pois não há verdadeira civilização sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade demonstrada, é um fato histórico. E os novos Sillonistas não poderão alegar que trabalharão apenas "no campo das realidades práticas", onde a diversidade de crenças não importa. Seu líder sente tão bem essa influência das convicções espirituais sobre o resultado da ação, que os convida, a qualquer religião que pertençam, a "fazer no campo das realidades práticas a prova da excelência de suas convicções pessoais". E com razão, pois as realizações práticas assumem o caráter das convicções religiosas, como os membros de um corpo até suas últimas extremidades recebem sua forma do princípio vital que o anima.

37 Dito isso, o que devemos pensar da promiscuidade em que se encontrarão engajados os jovens católicos com heterodoxos e incrédulos de toda espécie numa obra dessa natureza? Não é mil vezes mais perigosa para eles do que uma associação neutra? O que pensar desse convite a todos os heterodoxos e a todos os incrédulos para provar a excelência de suas convicções no campo social, numa espécie de concurso apologético, como se esse concurso não durasse há dezenove séculos, em condições menos perigosas para a fé dos fiéis e sempre em honra da Igreja Católica? O que pensar desse respeito por todos os erros e do estranho convite, feito por um católico a todos os dissidentes, de fortalecerem suas convicções pelo estudo e de as tornarem fontes sempre mais abundantes de novas forças? O que pensar de uma associação onde todas as religiões e até mesmo a livre-pensação podem se manifestar abertamente, à vontade? Pois os Sillonistas que nas conferências públicas e em outros lugares proclamam orgulhosamente sua fé individual certamente não pretendem calar a boca dos outros e impedir que o protestante afirme seu protestantismo e o cético seu ceticismo. O que pensar, finalmente, de um católico que, ao entrar em seu círculo de estudos, deixa seu catolicismo à porta, para não assustar seus camaradas, que, "sonhando com uma ação social desinteressada, repugnam fazer dela uma ferramenta para o triunfo de interesses, de facções ou mesmo de convicções quaisquer"? Tal é a profissão de fé do novo comitê democrático de ação social, que herdou a maior tarefa da antiga organização e que, segundo ele, "rompendo a ambiguidade mantida em torno do maior Sillon tanto nos meios reacionários quanto nos meios anticlericais", está aberto a todos os homens "respeitosos das forças morais e religiosas e convencidos de que nenhuma verdadeira emancipação social é possível sem o fermento de um idealismo generoso"7.

38 Sim, infelizmente! A ambiguidade foi rompida; a ação social do Sillon não é mais católica; o Sillonista, como tal, não trabalha para uma facção e "a Igreja, ele diz, não pode de forma alguma ser beneficiária das simpatias que sua ação possa suscitar". Estranha insinuação, realmente! Teme-se que a Igreja possa se beneficiar da ação social do Sillon para um fim egoísta e interesseiro, como se tudo o que beneficia a Igreja não beneficiasse a humanidade! Estranho reverso das ideias: é a Igreja que seria a beneficiária da ação social, como se os maiores economistas não tivessem reconhecido e demonstrado que é a ação social que, para ser séria e fecunda, deve se beneficiar da Igreja. Mas ainda mais estranhas, assustadoras e entristecedoras ao mesmo tempo, são a audácia e a leviandade de espírito de homens que se dizem católicos, que sonham em refazer a sociedade nessas condições e estabelecer na terra, por cima da Igreja Católica, "o reino da justiça e do amor", com trabalhadores vindos de toda parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, desde que esqueçam o que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e que ponham em comum o que os une: um generoso idealismo e forças morais tiradas "de onde puderem". Quando se pensa em tudo o que foi necessário de forças, de ciência, de virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e Doutores da Igreja, e na dedicação de todos os heróis da caridade, e numa poderosa hierarquia nascida do Céu, e em rios de graça divina, e em tudo edificado, ligado, impregnado pela Vida e pelo Espírito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem, quando se pensa, dizemos nós, em tudo isso, fica-se assustado ao ver novos apóstolos se empenharem em fazer melhor com a reunião de um vago idealismo e de virtudes cívicas. O que vão produzir? O que sairá dessa colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, onde brilharão pêle-mêle e numa confusão sedutora as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o objetivo proposto e que beneficiará os agitadores de massas menos utópicos. Sim, realmente, pode-se dizer que o Sillon conduz o socialismo, com os olhos fixos numa quimera.

Preparação de uma cidade futura, de uma Igreja universal sem dogmas, nem hierarquia

39 Receamos que haja ainda pior. O resultado dessa promiscuidade no trabalho, o beneficiário dessa ação social cosmopolita, não pode ser outra coisa senão uma democracia que não será nem católica, nem protestante, nem judaica; uma religião (pois o Sillonismo, como disseram seus líderes, é uma religião) mais universal que a Igreja Católica, reunindo todos os homens que se tornarão finalmente irmãos e camaradas no "reino de Deus". – "Não se trabalha para a Igreja, trabalha-se para a humanidade."

40 E agora, penetrados da mais profunda tristeza, perguntamo-nos, Veneráveis Irmãos, o que aconteceu ao catolicismo do Sillon. Ai de nós! Aquele que outrora dava tão belas esperanças, esse rio límpido e impetuoso foi captado em sua marcha pelos inimigos modernos da Igreja e agora forma apenas um miserável afluente do grande movimento de apostasia, organizado em todos os países, para o estabelecimento de uma Igreja universal que não terá nem dogmas nem hierarquia, nem regra para o espírito, nem freio para as paixões, e que, sob o pretexto de liberdade e de dignidade humana, traria de volta ao mundo, se pudesse triunfar, o reinado legal da astúcia e da força, e a opressão dos fracos, dos que sofrem e dos que trabalham.

141 Conhecemos muito bem os sombrios escritórios onde essas doutrinas deletérias são elaboradas, que não deveriam seduzir mentes clarividentes. Os líderes do Sillon não puderam se defender; a exaltação de seus sentimentos, a bondade cega de seus corações, seu misticismo filosófico misturado com uma parte de iluminismo os conduziram a um novo evangelho, no qual acreditaram ver o verdadeiro Evangelho do Salvador, a ponto de ousarem tratar Nosso Senhor Jesus Cristo com uma familiaridade supremamente desrespeitosa e, tendo seu ideal se assemelhado ao da Revolução, não hesitam em fazer entre o Evangelho e a Revolução comparações blasfematórias, que não têm a desculpa de terem escapado em alguma improvisação tumultuosa.

O Evangelho e Jesus Cristo desfigurados

42 Queremos chamar vossa atenção, Veneráveis Irmãos, para essa deformação do Evangelho e do caráter sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus e Homem, praticada no Sillon e em outros lugares. Assim que se aborda a questão social, é moda em certos círculos descartar primeiro a Divindade de Jesus Cristo, e depois falar apenas de sua suprema mansidão, de sua compaixão por todas as misérias humanas, de suas prementes exortações ao amor ao próximo e à fraternidade. Certamente, Jesus nos amou com um amor imenso, infinito, e Ele veio à terra sofrer e morrer para que, reunidos ao redor Dele, na justiça e no amor, animados pelos mesmos sentimentos de caridade mútua, todos os homens vivam em paz e felicidade. Mas para a realização dessa felicidade temporal e eterna, Ele impôs, com uma soberana autoridade, a condição de que se faça parte de seu rebanho, que se aceite sua doutrina, que se pratique a virtude e que se deixe ensinar e guiar por Pedro e seus sucessores. Além disso, se Jesus foi bom para os extraviados e pecadores, Ele não respeitou suas convicções errôneas, por mais sinceras que pudessem parecer; Ele os amou a todos para instruí-los, convertê-los e salvá-los. Se Ele chamou a Si, para aliviar, aqueles que labutam e sofrem, não foi para lhes pregar o ciúme de uma igualdade quimérica. Se Ele elevou os humildes, não foi para lhes inspirar o sentimento de uma dignidade independente e rebelde à obediência. Se seu Coração transbordava de mansidão para com as almas de boa vontade, Ele também soube armar-se de uma santa indignação contra os profanadores da casa de Deus, contra os miseráveis que escandalizam os pequenos, contra as autoridades que sobrecarregam o povo com fardos pesados sem mover um dedo para os aliviar. Ele foi tão forte quanto doce; Ele repreendeu, ameaçou, castigou, sabendo e nos ensinando que muitas vezes o temor é o princípio da sabedoria e que às vezes convém cortar um membro para salvar o corpo. Finalmente, Ele não anunciou para a sociedade futura o reinado de uma felicidade ideal, onde o sofrimento seria banido; mas por suas lições e por seus exemplos, Ele traçou o caminho da felicidade possível na terra e da felicidade perfeita no Céu: o caminho real da Cruz. Esses são ensinamentos que seria um erro aplicar apenas à vida individual em vista da salvação eterna; são ensinamentos eminentemente sociais, e eles nos mostram em Nosso Senhor Jesus Cristo algo mais que um humanitarismo sem substância e sem autoridade.

O clero e a ação social

43 Quanto a vós, Veneráveis Irmãos, continuai ativamente a obra do Salvador dos homens pela imitação de sua doçura e de sua força. Inclinai-vos a todas as misérias, que nenhuma dor escape à vossa solicitude pastoral, que nenhuma queixa vos encontre indiferentes. Mas também, pregai corajosamente seus deveres aos grandes e aos pequenos; a vós cabe formar a consciência do povo e dos poderes públicos. A questão social estará muito próxima de ser resolvida quando uns e outros, menos exigentes quanto aos seus direitos mútuos, cumprirem mais exatamente seus deveres.

44 Além disso, como no conflito de interesses, e sobretudo na luta contra forças desonestas, a virtude de um homem, sua própria santidade, nem sempre é suficiente para lhe garantir o pão cotidiano, e que os mecanismos sociais devem ser organizados de tal forma que, por seu funcionamento natural, paralisem os esforços dos maus e tornem acessível a toda boa vontade sua parte legítima de felicidade temporal, desejamos ardentemente que tomeis parte ativa na organização da sociedade para esse fim. E para isso, enquanto vossos sacerdotes se entregam com ardor ao trabalho de santificação das almas, à defesa da Igreja e às obras de caridade propriamente ditas, escolhereis alguns, ativos e de espírito equilibrado, munidos dos graus de doutores em filosofia e teologia, e possuidores de um perfeito conhecimento da história da civilização antiga e moderna, e os aplicareis aos estudos menos elevados e mais práticos da ciência social, para colocá-los, em tempo oportuno, à frente de vossas obras de ação católica. No entanto, que esses sacerdotes não se deixem enganar, no labirinto das opiniões contemporâneas, pelo miragem de uma falsa democracia; que não emprestem à retórica dos piores inimigos da Igreja e do povo uma linguagem enfática cheia de promessas tão sonoras quanto irrealizáveis. Que estejam persuadidos de que a questão social e a ciência social não nasceram ontem; que, em todos os tempos, a Igreja e o Estado, felizmente concertados, suscitaram para esse fim organizações fecundas; que a Igreja, que nunca traiu a felicidade do povo por alianças comprometedoras, não precisa se desvencilhar do passado e que lhe basta retomar, com a colaboração dos verdadeiros trabalhadores da restauração social, os organismos quebrados pela Revolução e adaptá-los, no mesmo espírito cristão que os inspirou, ao novo ambiente criado pela evolução material da sociedade contemporânea: pois os verdadeiros amigos do povo não são nem revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas.

Medidas práticas

45 Esta obra eminentemente digna de vosso zelo pastoral, desejamos que, longe de lhe obstar, a juventude do Sillon, liberta de seus erros, nela traga, na ordem e na submissão convenientes, uma colaboração leal e eficaz.

46 Caso, Veneráveis Irmãos, alguns grupos se recusassem a se submeter a essas condições, deveríeis considerá-los como recusando, por esse fato, submeter-se à vossa direção; e, então, haveria de examinar se se confinam na política ou na economia pura, ou se perseveram em seus antigos erros. No primeiro caso, é claro que não teríeis mais que vos ocupar deles do que do comum dos fiéis; no segundo, deveríeis agir em conformidade, com prudência mas com firmeza. Os sacerdotes deverão manter-se totalmente fora dos grupos dissidentes e contentar-se-ão em prestar o socorro do santo ministério individualmente aos seus membros, aplicando-lhes no tribunal da Penitência as regras comuns da moral relativamente à doutrina e à conduta. Quanto aos grupos católicos, os sacerdotes e os seminaristas, ao mesmo tempo em que os favorecem e os apoiam, devem abster-se de se agrupar a eles como membros; pois convém que a milícia sacerdotal permaneça acima das associações laicas, mesmo as mais úteis e animadas do melhor espírito.

47 Tais são as medidas práticas pelas quais julgamos necessário sancionar esta carta sobre o Sillon e os Sillonistas. Que o Senhor se digne, rogamos do fundo do coração, fazer com que esses homens e jovens compreendam as graves razões que a ditaram, que Ele lhes conceda a docilidade de coração, com a coragem de provar, diante da Igreja, a sinceridade de seu fervor católico; e a vós, Veneráveis Irmãos, que Ele vos inspire para com eles, já que doravante são vossos, os sentimentos de uma afeição plenamente paternal.

48 É nesta esperança, e para obter esses resultados tão desejáveis, que vos concedemos de todo coração, assim como a vosso clero e a vosso povo, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, perto de São Pedro, no dia 25 de agosto de 1910, no oitavo ano de Nosso Pontificado.

Referências

  1. "Imo recentiores perplures, eorum vestigiis ingredientes, qui sibi superiore sæculo philosophorum nomen inscripserunt, omnem inquiunt potestatem a populo esse: quare qui eam in civitate gerunt, ab iis non uti suam geri, sed ut a populo sibi mandatam, et hac quidem lege, ut populi ipsius voluntate a quo mandata est revocari possit. Ab his vero dissentiunt catholici homines, qui ius imperandi a Deo repetunt veluti a naturali necessarioque principio." ↩
  2. Marc Sangnier, Discours de Rouen, 1907. ↩
  3. "Interest autem attendere hac loco eos qui reipublicæ præfuturi sint posse in quibusdam caussis voluntate iudicioque deligi multitudinis, non adversante neque repugnante doctrina catholica. Quo sane delectu designatur princeps, non conferuntur iura principatus, neque mandatur imperium, sed statuitur a quo sit gerendum." ↩
  4. "Quamorbem, salva iustitia, non prohibentur populi illud sibi genus comparare reipublicæ, quod aut ipsorum ingenio aut maiorum institutis moribusque magis respondeat." ↩
  5. Marc Sangnier, Discours de Rouen, 1907. ↩
  6. Marc Sangnier, Paris, Mai 1910. ↩
  7. Marc Sangnier, Paris, Mai 1910. ↩
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