Os caracteres da Igreja: a infalibilidade, a imutabilidade

27/08/2024

Tradução por: Gabriel Sapucaia


Estudos sobre Deus, a Igreja, o Papa e sobre o sobrenatural e os sacramentos
M. l'abbé J.-B. AUBRY
Doutor em Teologia
Paris
Desclée, de Brouwers & Cie
1897

CAPÍTULO IV (pp. 108-121)
Os caracteres da Igreja: a infalibilidade, a imutabilidade

I. A FONTE DA INFALIBILIDADE NA IGREJA


A fonte da infalibilidade está para o Papa na Igreja, ou para a Igreja no Papa? Ou seja, é o Papa quem a recebe diretamente da assistência do Espírito Santo e a comunica à Igreja, ou é a Igreja que a recebe primeiro e a investe no Papa? Finalmente, qual é o método seguido por Deus na efusão deste grande privilégio sobre a Igreja Católica?
Esta questão foi discutida no Concílio do Vaticano e nos escritos publicados em sua ocasião; mas permaneceu indefinida, e ainda o é. Vejo apenas alguns dados para sua resposta:
1° Praticamente e do ponto de vista da direção a ser dada ao governo da Igreja, é claro que essa questão é de pura teoria; pois, qualquer que seja a fonte da infalibilidade, a prerrogativa do Papa é absolutamente a mesma, assim como as consequências que dela decorrem.
2° Mas, do ponto de vista da ideia teórica que se deve formar sobre a maneira como Deus comunica o privilégio da infalibilidade, do ponto de vista da teoria da vida da Igreja, considero que essa questão é completamente ilusória e repousa sobre um erro. A infalibilidade teria uma fonte, se fosse uma graça positiva, uma inspiração vinda de Deus para repousar sobre um ponto deste grande corpo católico e, a partir desse ponto, fluir sobre todo o corpo. Ora, ela é apenas uma graça negativa, uma preservação pela assistência de Deus, mas não pela efusão de um elemento real e objetivo que repouse aqui ou ali e que comece aqui ou ali. Ela não tem uma fonte, ela não está em lugar algum, pois não é uma existência real. Deus protege o Papa e a Igreja; em virtude dessa proteção, o Papa e a Igreja são infalíveis, ou seja, não há erro e não pode haver; é uma preservação que está em toda parte, que não está localizada, que não começa em lugar algum e para a qual não há uma fonte na terra, mas da qual Deus é a única causa.
3° Se fosse absolutamente necessário indicar uma fonte e um processo gradual, uma ordem de comunicação, de geração ou de origem no privilégio, eu raciocinaria por analogia e tiraria um argumento do que sabemos melhor em relação a outros privilégios, como o poder eclesiástico, a ordenação, a jurisdição, a autoridade, o sacerdócio, a própria graça: aqui há uma ordem seguida, há uma fonte, e essa fonte é o Papa, que recebe primeiro e diretamente de Deus e depois comunica. Aqui, a questão é bem clara: temos uma crença atual, universal e certa, e todo um ensinamento tradicional completo e peremptório. Ora, digo que, por analogia, o privilégio da infalibilidade, que faz parte da primazia, não pode ter uma fonte e seguir um curso diferente dela, mas deve fluir com ela do Papa para a Igreja; e essa opinião será perfeitamente harmoniosa com todas as grandes provas bíblicas e tradicionais da infalibilidade do Papa e com a constituição da Igreja.

II. A INDEFECTIBILIDADE DA IGREJA

  1. O erro nunca pode dominar na Igreja, isso é um dogma; mas ele pode avançar bastante, e isso é uma experiência e um fato histórico, Deus permitindo-lhe grandes sucessos para provar os eleitos. Esse é o sentido da profecia de Jesus Cristo, prevendo a grande provação da Igreja, que deve abalar até as virtudes dos céus e quase seduzir os justos. Houve momentos, na História, em que o sucesso do erro foi tão longe quanto possível e, ao que parece, até o limite extremo além do qual esse sucesso se tornaria um triunfo sobre a verdade, triunfo que é impossível.
    As duas épocas da História em que esse sucesso do erro esteve mais próximo de ser completo foram: 1° aquela em que, como diz São Jerônimo, o mundo se surpreendeu por ter se tornado ariano, de modo que essa frase de São Jerônimo, e especialmente o fato que ela expressa, são para nós um problema histórico difícil de resolver; 2° aquela do grande cisma do Ocidente e do Concílio de Constança e de Basileia, onde parecia, por um lado, que a própria Santa Sé havia caído nas mãos do inimigo, e, por outro lado, que o erro prevalecia no seio de um concílio ecumênico que representava a Igreja universal, de tal forma que não nos é tão fácil julgar de que lado estava a verdadeira sucessão de São Pedro, nem determinar exatamente até onde vai e onde termina a ecumenicidade do concílio.
    Essas são objeções, problemas: mas há uma resposta a essas objeções e uma solução para esses problemas.

  2. Se a Igreja Católica pudesse se enganar, ela se enganaria pelo menos uma ou duas vezes por ano, tanto são delicadas as questões que são objeto de seus estudos, e tão pouco ela poupa suas declarações dogmáticas. Não seria difícil apanhá-la em erro, e não seria necessário, para provar seus erros e para colocá-la em contradição consigo mesma, cavar tão fundo na História e nos trazer, como exemplos de suas contradições, casos tão raros, tão obscuros e tão pouco conclusivos como os de Honório, de Galileu, etc.
    Como tudo é sábio, ordenado, harmonizado, distribuído com número, peso e medida, enfim, divinamente previsto nessa Igreja de Deus onde o erro só vê desordem e confusão.

III. O OBJETO E O ESTUDO DA INFALIBILIDADE DA IGREJA
No Schema de Ecclesia, cuja discussão deveria seguir a que teve como objeto o Pontífice romano e que foi concluída, no Concílio do Vaticano, pela definição da infalibilidade do Papa, um capítulo inteiro foi dedicado à questão de saber qual é o objeto da infalibilidade da Igreja e do Papa, já que, segundo o concílio, é a mesma coisa, e até onde ela se estende. Esse capítulo era o nono, intitulado De infallibilitate Ecclesiae. Nesse esquema, que, apesar da proibição formal do Santo Padre, foi publicado nos jornais da Alemanha, logo após ter sido distribuído aos Padres do concílio, e que Monsenhor Martin, bispo de Paderborn, inseriu em sua coletânea de documentos do concílio, expunha-se o direito que Jesus Cristo deu à Igreja, na pessoa dos apóstolos, de ensinar a fé e de proscrever toda doutrina contrária à revelação; declarava-se que, em vista dessa sublime missão, Deus lhe deu o privilégio da infalibilidade, privilégio que compreende, dizia-se, não apenas as verdades da fé em si mesmas, mas tudo o que pode contribuir para protegê-las contra o erro. Esse decreto foi um dos que ficaram reservados para o dia em que o concílio for novamente convocado.

Há, na prorrogação do concílio, como em todos os eventos da História, uma razão providencial. Sabemos quais dificuldades encontrou a definição do dogma da infalibilidade pontifícia; no entanto, ela foi aprovada, e eis que este dogma foi incorporado ao ensino, e recebido com menos oposição definitiva do que qualquer outro dogma jamais sofreu; tudo contribuiu para sua vitória, e hoje vemos que essa definição chegou no momento psicológico em que era oportuno que chegasse. A questão de definir o objeto e a extensão desse privilégio também não é uma questão insignificante; em si mesma, é menos fundamental e menos importante, pois depende da outra; mas é igualmente propensa a disputas, se não mais; e temos uma ideia disso nas controvérsias que ela já suscitou antes mesmo de ser levantada, quando, para fazer com que a infalibilidade fosse rejeitada tornando-a odiosa, objetou-se que ela se estendia e tocava em tudo. Quando, portanto, essa segunda questão for levantada, veremos os espíritos que têm medo da autoridade da Igreja e que não ousam mais, no entanto, lhe recusar um domínio doutrinal próprio onde ela é infalível, trabalhar com todas as suas forças, não podendo mais reivindicar a independência absoluta da razão, para recuar pelo menos o mais possível, para recuar as fronteiras que a limitam, ou seja, para restringir o máximo possível o domínio sobre o qual se exerce a autoridade docente e, consequentemente, infalível da Igreja, e, por consequência, a infalibilidade do Papa. Eles acharão que a razão está sendo aprisionada em um círculo de ferro, que toda liberdade lhe é tirada, que não lhe resta mais nenhum domínio próprio e independente, que se dá demais à autoridade doutrinal da Igreja e do Papa, ao lhes conceder o direito de se envolver em tudo, de tudo controlar, de julgar todas as ciências humanas e de censurar qualquer doutrina que, de perto ou de longe, afete as da fé e da moral.

Por outro lado, aqueles que são verdadeiros filhos da Igreja, aqueles que são verdadeiros amigos da fé e da verdade, que ainda não aprofundaram essa grande questão das relações entre a razão e a fé, também descobrirão nela muitas coisas. Eles perceberão que essa questão tem muito mais consequências do que imaginavam, que, de fato, a revelação e o ensino da Igreja tocam em todas as coisas: a Igreja tem sobre toda doutrina um controle a exercer, pelo menos para proibir o que vai contra a revelação, senão para mostrar o caminho das verdades sob sua alçada.

Não, de fato — e espero que o concílio defina isso — não há nada, na ordem intelectual, que seja absolutamente independente da fé, assim como na ordem moral não há nada absolutamente independente da graça e do sobrenatural. Mas isso não é uma servidão; é uma liberdade, ao contrário, pois essa subordinação da razão à fé serve apenas para impedir que as ciências se desviem, indo contra a verdade absoluta, que é a palavra de Deus, e que não se pode contradizer sem errar, pois, afinal, as ciências humanas só serão impedidas do lado do erro e nunca do lado de qualquer verdade que seja. E se o concílio definir que a fé tem, em relação às ciências, não apenas um papel negativo que consiste em impedi-las de contradizer a revelação, mas também um papel positivo e diretivo, consistindo em lhes mostrar o caminho da verdade, mesmo na ordem racional e científica, por que elas clamariam por submissão? Na hipótese, a fé, ao guiá-las assim, só lhes imporia verdades; não seria isso um benefício? Quando um cientista faz e propõe ao mundo uma descoberta que se impõe e que muda as ideias recebidas, quem pensa em clamar por submissão? Ora, seria a mesma coisa, e deveríamos antes celebrar uma feliz descoberta.
Mas não, só se impede a Igreja de instruir, de iluminar os homens, só se acusa a palavra da Igreja de acorrentar, quando, na realidade, ela só tem o efeito de nos libertar do erro. Vocês verão que no concílio essa questão será discutida nesse sentido e com esses argumentos; então vamos estudá-la e nos preparar.

Digo que a infalibilidade da Igreja e do Papa liberta as inteligências, e quanto mais ela se estender, mais elas serão libertadas, seja objetivamente, pois ela elimina o perigo de erro, seja subjetivamente, pois nos tranquiliza, nos permite trabalhar, sem medo de erro grave, em todos os pontos a que se aplica. Pelo menos nesses pontos, ela nos liberta da incerteza, que não é apenas um dos males, mas o mal da inteligência que busca a verdade; ela nos dá pelo menos esse terreno sólido sobre o qual podemos trabalhar com segurança. Graças a ela, o cientista pode, com toda segurança, entregar-se, seja na ordem das ciências sagradas, aos trabalhos da crítica, da Hermenêutica, da compreensão da fé, etc., seja na ordem das ciências humanas, a tantos estudos atraentes e profundos, sem medo de substituir conclusões incompletas ou falsas pelas verdadeiras doutrinas de Jesus Cristo, e com a certeza de possuir pelo menos uma soma de verdades adquiridas, seguras e protegidas, ao menos essas, da dúvida e do erro. Tudo isso não é a liberdade que a verdade deveria nos trazer, segundo a promessa de Jesus Cristo?

IV. A LUTA DA AUTORIDADE E DA INFALIBILIDADE DA IGREJA
Essa autoridade, essa infalibilidade têm um limite? Sim, sem dúvida. Mas é preciso compreendê-lo e não o deslocar. É evidente que a Igreja e o Papa — que são uma só coisa, como diz São Francisco de Sales — não são uma instituição política, comercial ou terrestre em qualquer título, mas religiosa e sobrenatural. Aqui está o seu limite: ela tem competência, autoridade e infalibilidade sobre tudo o que se relaciona ao fim sobrenatural do homem. Mas resta saber o que se relaciona a esse fim. Eu digo, em primeiro lugar, que tudo absolutamente se relaciona a esse fim, seja diretamente, seja indiretamente, seja de perto, seja de longe; não há coisas, por mais temporais, naturais ou terrenas que sejam, que não tenham, na intenção de Deus e na organização religiosa do homem, qualquer relação com o fim sobrenatural do homem. Portanto, não há absolutamente nada que escape absolutamente e completamente da autoridade da Igreja e com o qual a Igreja não possa se envolver, quando ela vir que o fim sobrenatural está em jogo, seja em benefício ou em detrimento, favorecido ou comprometido; a Igreja intervirá então nessas coisas, na medida em que se relacionem a esse fim, que sejam matéria de um dever em que se possa merecer ou desmerecer, e questões em que se possa respeitar ou contradizer o fim.
Sem dúvida, há uma quantidade imensa de objetos e questões com os quais a Igreja não se ocupa e nunca se ocupará; não é que esses objetos escapem completamente de seu domínio, que é católico, ou seja, universal, como o de Jesus Cristo, como o de Deus: é que ela não vê o interesse religioso do homem sempre e gravemente comprometido, é que ela não quer desperdiçar suas intervenções, suas definições, seus julgamentos; é que ela é prudente e sabe que muitas vezes seria inconveniente querer regulamentar tudo; mas não é que ela seja incompetente; ela é competente em toda parte, pois em toda parte há matéria para o homem merecer ou desmerecer, trabalhar a favor ou contra seu fim sobrenatural, conformar-se à fé ou contradizê-la.

Por isso, não gosto que se diga: Há objetos, fatos, verdades, uma ordem de objetos, fatos, verdades, em que a Igreja não tem competência e não é infalível. Não gosto que se diga isso, porque há sempre, nesses objetos, fatos ou verdades, um lado pelo qual eles se relacionam ao fim sobrenatural e, por isso, pertencem ao domínio de Deus, de Jesus Cristo e da Igreja, que, consequentemente, pode intervir nesse aspecto com sua infalibilidade; preferiria que se dissesse: há, nessas coisas, um aspecto do qual a Igreja não se ocupa, o aspecto puramente humano, terrestre, natural. Eu nem ousaria dizer que ela não tem o direito de se ocupar e intervir, e que não seria infalível; pois 1° tudo, até mesmo o que é natural, terrestre e puramente humano, pertence ao domínio de Deus, tudo o que pertence ao domínio de Deus pertence ao de Jesus Cristo1; tudo o que foi dado a Jesus Cristo foi dado à Igreja, seja como domínio, seja como poder, seja como revelação2; portanto, não se pode mostrar nada que não pertença à Igreja. 2° Deus é tão infalível e poderoso na ordem natural quanto na ordem sobrenatural; se lhe agradou tocar em questões de ordem natural, sua palavra é tão segura e autorizada nessa ordem quanto na ordem sobrenatural, e a Igreja da mesma forma; portanto, não gosto que se diga que a Bíblia ou a Igreja não são infalíveis em questões puramente racionais; isso é falso; não se limita a ciência de Deus. Mas se a Igreja decidisse uma questão que não é de seu domínio, poderia errar? Nego suppositum.

Finalmente, aqui está uma observação importante: a Igreja é infalível não apenas para decidir as questões que pertencem ao depósito da revelação, mas também para determinar as questões que pertencem a esse depósito e para declarar que tal ou tal questão pertence ou não a ele: ninguém melhor que ela sabe até onde se estende esse depósito e quais são as questões que dele dependem; ninguém pode traçar o limite de sua competência e de sua infalibilidade, e ela, ao contrário, é infalível na determinação dos objetos que pertencem à sua competência e à sua infalibilidade; nunca veremos a Igreja dizer que tal ou tal questão não é de sua competência. Portanto, aqui está uma regra elementar e absolutamente importante: todas as vezes que a Igreja se ocupa de uma questão, ela declara, ipso facto, que essa questão é de sua competência, que ela tem o direito de se ocupar dela e de exercer sua infalibilidade.

CAPÍTULO V
A IMUTABILIDADE DA DOUTRINA E DA CONSTITUIÇÃO DA IGREJA

Se fosse de outra forma, e se fosse possível marcar um limite à sua infalibilidade, seria fácil para todos os hereges responder, quando a Igreja os condena: essa questão não é da sua competência, e sua infalibilidade não se exerce aqui; portanto, mantenho minha opinião, pois essa questão é uma questão livre. Foi exatamente isso que disseram os jansenistas na questão dos fatos dogmáticos, e é exatamente nesse sentido que a Igreja respondeu, declarando-se competente e infalível nos fatos dogmáticos, ou seja, em tudo o que interessa à fé. A Igreja é a juíza da fé; ora, a primeira questão sobre a qual ela tem autoridade a esse título é a de saber até onde se estende a fé.

V. A IMUTABILIDADE DA DOUTRINA E DA CONSTITUIÇÃO DA IGREJA

  1. Por que se reclama da imutabilidade do dogma, como se fosse uma servidão para o espírito humano, e da inflexibilidade da Igreja em relação à fé, como se fosse uma tirania intelectual, uma tirania para a razão? Toda a questão é saber se o dogma é verdadeiro; se for verdadeiro, ele deve ser imutável; a imutabilidade do ensino da Igreja não é mais uma servidão, uma tirania, mas uma garantia, uma proteção, um porto contra o erro, a salvação do espírito humano e de toda a ordem intelectual, aos quais essas verdades imutáveis oferecem finalmente uma base. Digo finalmente, pois nenhum filósofo conseguiu fornecer essa base.
    Não refarei aqui o quadro dos erros, das dúvidas, das variações do espírito humano. No meio dessa anarquia de doutrinas contraditórias que disputam a entrada e a posse das inteligências, da indecisão, das dúvidas que resultam disso para a maioria dos homens capazes de pensar, mas desprovidos de um meio fixo e seguro de chegar à verdade e de mantê-la, que felicidade para as inteligências retas, de boa fé e sinceramente desejosas da luz da verdade, que felicidade até mesmo para a filosofia em geral que haja, em algum lugar do mundo, uma sociedade docente cujo ensino nunca variou e se recusa, para o futuro, a qualquer variação, cuja doutrina é perfeitamente coerente consigo mesma, e, coisa inaudita na História, que reúne em seu seio milhões de discípulos fiéis em teoria e na prática a esse ensino, inteiramente satisfeitos de coração e de espírito por sua posse, perfeitamente seguros da verdade, tão seguros que estão sempre prontos a morrer para afirmá-la, que milhões morreram de fato, e que ainda morrem todos os dias por isso. Lá, ao menos, vejo princípios, uma doutrina fixa, sólida, imutável; lá, ao menos, não se vacila, não se hesita. Em qualquer outro lugar, é tão raro, tão impossível encontrar a inteligência humana satisfeita quanto encontrar na terra o homem feliz. Aqui, todos se dizem felizes e satisfeitos, coisa estranha, satisfeitos em todas as tendências do coração e do espírito; todos se consideram certos de possuir a verdade. Não é isso suficientemente miraculoso?
    Pelo menos aqui se descansa, está-se seguro; e todo espírito que não está abrigado lá está inquieto e sem descanso: Inquietum est cor meum donec requiscat in te1.
    E notem uma instituição admirável, um preceito admirável de uma sabedoria verdadeiramente divina, que prova, no autor do cristianismo, ao mesmo tempo, um conhecimento perfeito e sobre-humano de nossa natureza e de sua necessidade mais profunda, do principal perigo que ela corre na ordem das doutrinas, e a certeza absoluta de possuir a verdade: essa satisfação, esse descanso das inteligências é um dever, uma obrigação rigorosa imposta a todos; o exame e a dúvida são pecados e fazem decair do status de cristão aquele que os concebe e se entrega a eles. Você diz que isso, sobretudo, é uma escravidão, uma tirania; eu digo que isso, sobretudo, é uma instituição divinamente sábia, tão simples que, quando se conhece, acha-se que todos os autores de sistemas deveriam tê-la inventado, e que, de fato, desde o estabelecimento do cristianismo, todos a adotaram; mas, no entanto, tão difícil de encontrar, que antes do cristianismo nenhum filósofo ousou armar sua instituição com esse meio de repelir a negação e a dúvida.
    Deixemos de lado a própria divindade da Igreja, que para nós, no entanto, é um fato comprovado e certo de fé; mesmo que o cristianismo não fosse mais do que uma instituição humana, não seria uma felicidade para a inteligência humana, para a filosofia em geral, para a ciência no sentido mais vasto e elevado dessa palavra, ter assim, em algum lugar do mundo, um compêndio de doutrinas absolutamente fixas e uma sociedade sábia que as aplique e experimente sua virtude em todos os tempos, sob os olhos de todos e em todas as ordens de coisas? Digo mais: isso não seria apenas uma felicidade, seria um milagre, e um dos milagres mais surpreendentes que já se viu, pois não há nada acima dos milagres intelectuais que exercem sua ação sobre o que há de mais rebelde, de mais inatacável no mundo, o espírito humano; e este teria produzido o que nunca se viu, a unidade de fé, a fixidez das doutrinas, a certeza de possuir a verdade; pois nunca, nem mesmo com a ajuda de qualquer filosofia, a natureza humana conseguiu se constituir em tal certeza; e a longa experiência da História autoriza a acreditar que ela é humanamente incapaz disso e que nenhuma filosofia teria conseguido produzir um fenômeno como esse.
    Lutero, ele mesmo, que tanto mudou na religião, sentiu esse milagre e disse, em um de seus bons momentos: "Dou graças a Jesus Cristo por conservar na terra uma única Igreja por um grande milagre; de modo que ela nunca se afastou da verdadeira fé por nenhum decreto."
    Em nenhum outro lugar, seja entre as sociedades religiosas, seja entre as seitas filosóficas, encontro algo que se aproxime, mesmo de longe, desse fenômeno. Tanto é necessário ter uma regra de fé para assegurar as doutrinas contra a infeliz instabilidade de nossas ideias; tanto é verdade, como eu disse acima, que, desde o aparecimento do cristianismo, todos os inventores de sistemas filosóficos quiseram imitá-lo nesse aspecto, tomando e impondo como regra de fé sua própria concepção, e declarando que ela era a verdade, à exclusão de qualquer outro dogma.
    Mas para sustentar bem esse papel, para impor tão imperiosamente sua doutrina, excluir tão rigorosamente tudo o que vai contra ela, e declarar que não há salvação fora do que se ensina, enfim, para ser tão absolutamente intolerante com qualquer outra doutrina, é preciso estar absolutamente certo do que se ensina. Ora, essa convicção, essa certeza, fundada ou não, não examino isso aqui, é o privilégio exclusivo da Igreja Católica, e é isso que faz sua força.

  2. Sobre o papel, a importância, a utilidade ou mesmo a necessidade dos concílios na constituição e na vida da Igreja, dois erros são igualmente subversivos.
    Alguns pensam que a democracia entrou na constituição da Igreja, que ela tem seu lugar no governo ao lado da aristocracia, para contrabalançar a monarquia e temperá-la; que, em consequência, os concílios, sendo o exercício completo desses três poderes reunidos para cooperar juntos, são necessários ao governo e ao funcionamento regular da Igreja, e que a democracia e a aristocracia têm o direito de que a monarquia os reúna de tempos em tempos.
    Outros, vendo na Igreja uma instituição humana, procuram-lhe origens semelhantes às de qualquer outra sociedade humana. Segundo eles, a Igreja não saiu das mãos de Deus constituída em todas as suas partes, como é hoje; mas ela se desenvolveu pouco a pouco. O ponto de partida não foi uma sociedade totalmente organizada, mas um acordo oficioso e livre entre um certo número de homens animados por um mesmo pensamento, tendo as mesmas visões, e que tiveram de se reunir em assembleia deliberativa para discutir sobre a organização que queriam dar às suas ideias. Posteriormente, foi necessário ainda se reunir de tempos em tempos em assembleias parciais ou plenárias; e assim os concílios foram, sobretudo para os primeiros séculos, durante todo o período de organização, a forma necessária da implementação da vida da Igreja e de seu governo, e ainda hoje são o ato essencial e obrigatório de seus julgamentos, o meio que ela tem para constatar de tempos em tempos seu estado, revisar sua constituição, reformular seu dogma e suas leis, enfim, o meio que deve necessariamente adotar para se harmonizar com seu tempo e se preparar para responder às necessidades diversas, às exigências diferentes dos séculos e mudar as fórmulas conforme as épocas. Para responder a esse segundo erro, lembremos o que dissemos em outro lugar, provando que a Igreja foi constituída de uma vez e de todas as partes por Jesus Cristo em seu estado atual.

  3. Quando vejo a imutabilidade da doutrina da Igreja, e ao mesmo tempo a solidez de sua constituição, a razão, o motivo aparece logo: é porque a constituição da Igreja está solidamente baseada sobre a doutrina. E para se manter ela mesma imutável, a Igreja precisa que sua doutrina seja imutável. Qualquer mudança na doutrina implicaria uma mudança na constituição, e qualquer mudança na constituição se refletiria sobre a doutrina. Portanto, é necessário que a doutrina permaneça intacta para que a constituição permaneça sólida e a Igreja se mantenha firme e constante através dos tempos.

Assim, a inflexibilidade da Igreja em termos de fé e doutrina não é apenas um sinal de sua força, mas também uma prova de sua confiança em sua missão divina. A Igreja se recusa a ceder às exigências de mudanças temporais porque ela sabe que sua doutrina é verdadeira e deve permanecer imutável para cumprir seu papel de guia espiritual para a humanidade. Ela reconhece que sua missão é levar as almas à salvação eterna, e para isso, é essencial que ela mantenha a pureza e a integridade de seus ensinamentos, sem se desviar ou comprometer a verdade que lhe foi confiada por Deus.

Portanto, a imutabilidade da doutrina da Igreja é um testemunho de sua fidelidade à verdade revelada e de seu compromisso inabalável de preservar essa verdade para todas as gerações futuras.

  1. Mateus, XXVIII, 18; João, III, 35; XIII, 3; XVII, 10.
  2. João, XVII, 8; XX, 21; Mateus, XXVIII, 18.
  1. "A Igreja", diz Audisio, "deixou metade do mundo se afastar dela, em vez de mudar uma palavra na fórmula de suas crenças"2. Essa inflexibilidade, ao mesmo tempo, faz sua força e prova a certeza que ela tem de sua própria divindade. Uma certeza que chega a esse ponto assemelha-se à dos mártires que se deixam degolar e merece ao menos consideração.
  2. Santo Agostinho
  3. Introdução aos estudos eclesiásticos, tomo I, p. 206.