O homem e a mulher antes e depois do pecado original
Por: São João Crisóstomo (Jean Chrysostome, Huit sermons sur la Genèse et Césaire d'Arles, Homélies sur Abraham et Jacob), Santo Agostinho (Comentário ao Gênesis) e Santo Tomás de Aquino (Suma Teológica: Ia, q. 92.)
Quarta homilia (S. João Crióstomo)
1) O desígnio de Deus para o homem, coroado antes mesmo de ser criado
Ontem, você aprendeu como Deus deu ao homem a realeza e o domínio sobre os animais, e como ele não demorou a retirar isso dele. Dizer mais precisamente que é o próprio homem que se excluiu desse privilégio por desobediência. Pois essa realeza ele a tinha apenas pela bondade de Deus; não era uma recompensa concedida por seus méritos, pois, antes mesmo de existir, Deus o havia adornado com esse privilégio. Não diga que é posterior à sua aparição e como consequência de seus muitos méritos que o homem adquiriu o privilégio de comandar os animais, pois é ao se preparar para moldar o homem que Deus se expressa ao mesmo tempo sobre o domínio que ele lhe confiará: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança, e que ele domine sobre os animais da terra" (Gn 1,26). Antes mesmo de receber a vida, o homem recebe um privilégio, antes mesmo de ser criado, ele é coroado, antes de ver o dia, é convidado a subir ao trono de um rei! Nas relações entre os homens, é necessário esperar estar avançado em idade, ter se esforçado muito, enfrentado mil provações, em tempos de paz e de guerra, para que um superior lhe conceda uma marca de honra. Mas Deus não age assim: mal o homem vê a luz do dia, e Deus lhe confere essa dignidade, indicando assim que ela não é uma resposta aos seus méritos, que não é uma dívida que ele está quitando, mas um presente gratuito. [PÁGINA 59] Receber esse domínio é o efeito da única bondade de Deus; ser despojado dele é o efeito da única renúncia humana. Um rei destitui do poder aqueles que não obedecem às suas ordens, e Deus age da mesma forma com o homem, retirando-lhe esse domínio.
As relações entre o homem e a mulher antes da queda 2. Vamos ver hoje a que outro privilégio a falta, por sua própria natureza, pôs fim, que tipo de servidão ela gerou, estendendo sobre a criatura humana uma rede de relações de dominação, como um príncipe que forja todo um sistema de correntes.
O primeiro tipo de dominação, de submissão: o poder que o homem exerce sobre a mulher. Somente após a queda, de fato, a mulher experimentou a dependência. Antes de desobedecer, ela compartilhava exatamente os privilégios do homem: quando Deus a formou, as palavras que ele usou foram exatamente as mesmas que ele havia usado na criação do homem. Ele disse: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança" (Gn 1,26), e não: "Que o homem seja." Da mesma forma, ele não diz: "Que a mulher seja", mas aqui também ele diz: "Faremos para ele uma ajudante" (Gn 2,18). E ele não se contenta em falar de "ajuda", ele adiciona: "que lhe seja semelhante"; o que mostra que havia igualdade.
Agora, quando Deus associa estreitamente os animais ao homem para ajudá-lo nas necessidades de nossa vida, veja como, para evitar que a mulher seja colocada no papel de escrava, ele faz uma distinção de linguagem muito clara: "Ele trouxe os animais até o homem, e o homem não encontrou uma ajudante que fosse semelhante a ele, que tivesse uma relação de semelhança com ele" (Gn 2,19-20). O quê? O cavalo não presta ajuda quando está engajado na batalha ao lado do homem? O boi não presta ajuda quando puxa o arado e compartilha nosso trabalho durante o plantio? E o jumento e o mulo [PÁGINA 60] não prestam ajuda quando colaboram no transporte de mercadorias? Para evitar esse tipo de argumento, Deus estabeleceu cuidadosamente uma distinção: pois ele não diz simplesmente que o homem não encontrou uma ajudante, ele diz que não encontrou uma ajudante "que tivesse uma relação de semelhança com ele". E Deus mesmo não havia dito: "Faremos para ele uma ajudante", mas: "Faremos para ele uma ajudante que lhe seja semelhante". Essa é a realidade que precedeu a queda.
O plano de amor de Deus ainda se manifesta após a queda, em suas próprias consequências 3. Após a queda, veio esta palavra: "Você se voltará para o seu marido, e ele dominará sobre você" (Gn 3,16). "Eu a criei", diz Deus, "com os mesmos privilégios, mas você abusou do seu poder; agora conheça a sujeição. Você não suportou a sua liberdade, suporte agora a servidão. Você não soube comandar, como a prova dos fatos mostrou, agora é sua vez de ser comandada e experimentar o domínio do homem." Daí o "Você se voltará para o seu marido e ele dominará sobre você".
Veja aqui novamente a bondade de Deus. Ao ouvir falar de dominação sobre ela, a mulher poderia ter visto apenas um fardo; mas Deus expressa as coisas com um espírito de cuidado, dizendo: "Você se voltará para o seu marido", o que significa: "Ele será seu refúgio, porto seguro, segurança; em todos os perigos que podem surgir, é para ele que você se voltará em busca de abrigo." Isso não é o único vínculo que ele estabeleceu entre eles; ele os envolveu também nos laços do desejo, uma corrente inquebrável.
Assim, você vê, a falta gerou a dependência, mas, você também vê, Deus, em sua sabedoria, em sua perspicácia, tirou proveito disso para o nosso bem. Ouça então Paulo falar sobre essa submissão, e você entenderá a harmonia que existe, mais uma vez, entre o Antigo e o Novo Testamento: "Que a mulher, durante a instrução, permaneça em silêncio em toda a submissão" (1 Tm 2,11). Paulo também, você vê, submete a mulher ao homem. Mas seja paciente, você vai entender a razão.
Por que, de fato, "em toda a submissão"? "Não permito que a mulher ensine" (1 Tm 2,12). Por quê? É porque ela foi uma vez uma mestra inadequada para Adão. "Nem para exercer autoridade sobre o homem" (ibid.). Por quê? Porque ela exerceu autoridade sobre ele de maneira inadequada, uma vez. "Mas ela permanecerá em silêncio" (ibid.). E por quê? "Não foi Adão, de fato, que foi enganado, mas a mulher, que, sendo enganada, se tornou capaz de transgressão" (1 Tm 2,14). É por isso que ela foi excluída da cadeira de ensino. "Aquele, diz no fundo São Paulo, que não sabe ensinar, que aprenda, e se ele pretende ensinar em vez de aprender, é a ele mesmo e aos outros com ele que ele perderá. E foi isso que aconteceu à mulher." Agora, a mulher está sujeita ao homem, e essa submissão é devida à falta, agora está clara.
Agora, como entender a frase: "Você se voltará para o seu marido e ele dominará sobre você" (Gn 3,16)? Qual é a opinião de Paulo sobre isso, sobre o cuidado expresso nessa frase, como ele concilia a dominação e a afeição? É na carta aos Coríntios [15] que ele declara: "Maridos, amai vossas mulheres" (Ef 5,25). Você encontra aí o "Você se voltará para o seu marido". "As mulheres devem respeitar seus maridos" (Ef 5,33). Você encontra aí o "Ele dominará sobre você". A dominação, você não vê, é muito leve, desde que o mestre ame ardentemente aquele que está submisso a ele, desde que o respeito se una ao amor. A submissão é assim purificada do que teria de penoso.
Então, aqui está o primeiro tipo de dominação introduzido pela desobediência. E seria errado pensar que se Deus a temperou, foi porque ele não podia fazer de outra forma. Pelo contrário, a falta, ela não podia deixar de abrir caminho para a escravidão. Representa o segundo tipo de sujeição, mais pesado que o primeiro, e também tem sua origem, seu fundamento na falta.
2) Comentário ao Gênesis: Livro IX (S. Agostinho)
As palavras de Deus: "Não é bom" etc.
3. Vejamos agora como se há de interpretar o que Deus disse: Não é bom que o homem esteja só. Façamos-lhe uma ajuda semelhante a ele4. Se o disse com vozes e sílabas pronunciadas no tempo, ou se fez referência à razão que estava no Verbo de Deus desde o princípio, e assim tenha sido criada a mulher. Esta razão, tinha-a então em conta a Escritura, quando dizia: Deus disse: "Faça-se"5 isto ou aquilo, quando no princípio foram criadas todas as coisas. Ou, talvez, Deus o disse na mente do próprio homem, tal como ele fala a alguns de seus servos nos seus próprios servos? Desse grupo de seus servos era aquele que disse no salmo: Ouvirei o que o Senhor Deus falará em mim6. Ou mediante um Anjo se fez a revelação de algum modo ao homem no mesmo homem nas semelhanças de vozes corporais, ainda que a Escritura tenha calado se foi em sonhos ou em êxtase, pois assim costuma acontecer. Ou de algum outro modo, como foi a revelação feita aos profetas, da qual é uma mostra o que está escrito: E disse-me o anjo que falava em mim7. Ou aquela voz que se produziu por meio de uma criatura corporal, como a voz que veio da nuvem: Este é o meu Filho8. Não podemos saber com certeza com qual destes modos aconteceu; contudo, tenhamos por certo que Deus o disse, e se o disse mediante uma voz corporal ou proferida no tempo com uma semelhança corporal, não o disse pela sua substância, mas por meio de alguma criatura sujeita às suas ordens, como falamos no Livro anterior9.
4. Deus foi visto depois por santos homens, algumas vezes com cabelos brancos como a lã, outras vezes, com a parte interior do corpo com o aspecto do bronze10, outras vezes, de um modo ou de outro. Contudo, para aqueles que creem ou entendem com mente esclarecida que a substância da Trindade é eterna e incomutável e não se move quanto ao tempo e ao lugar, e move quanto ao tempo e ao lugar as criaturas, é certíssimo, digo eu, que essas visões não apresentaram a Deus na substância que é sua essência, mas por meio de criaturas a ele sujeitas. Por meio de formas e vozes corporais mostrou e disse o que quis. Portanto, não perguntemos mais como disse, mas, antes, procuremos entender o que disse. A própria Verdade eterna, pela qual tudo foi criado, determina em si mesmo a ajuda que deveria ser feita para o homem, e nessa verdade ouve aquele que nela pode conhecer a razão do que foi criado.
A mulher foi criada para a geração
5. Se surgir a pergunta: para que foi conveniente que fosse feita esta ajuda, em nada mais se deve pensar senão para procriar filhos, assim como a terra é ajuda para a semente e a fim de que de ambos possam nascer os rebentos, pois isto fora dito na primeira criação das coisas: Homem e mulher ele os criou. Deus o abençoou e lhes disse: "Crescei e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a"11. Esta razão da criação181 e da união do homem e da mulher e a bênção não foram suprimidos depois do pecado e do castigo. Com efeito, esta é a causa pela qual a terra está agora cheia de homens que a dominam.
6. Embora se fale que eles se uniram e geraram tão-só depois de expulsos do paraíso, não vejo razão que possa proibir a crença de que ainda no paraíso houvesse núpcias honrosas e leito conjugal sem mancha12. Assim, com a ajuda de Deus, dispensada a eles que viviam com fidelidade e na justiça e o serviam com obediência, poderiam gerar filhos de seu sêmen sem qualquer ardor da sensualidade, sem os trabalhos e as dores do parto. Os filhos não sucederiam aos pais que falecessem, mas, os que tivessem gerado, permaneceriam em algum estado com respeito à forma e receberiam o vigor corporal, alimentando-se da árvore da vida que fora plantada no paraíso. Estes e os que eles tivessem gerado chegariam ao mesmo estado até que se perfizesse um número determinado, se todos tivessem vivido na justiça e na obediência; então aconteceria aquela transformação de modo que os corpos animais, transformados em outra qualidade sem passarem pela morte, seriam mudados para corpos espirituais, porque serviriam incondicionalmente ao espírito que os governaria, e viveriam somente pelo espírito vivificante sem qualquer ajuda de alimentos corporais. Isso poderia acontecer, se a transgressão do preceito não lhes merecesse o castigo da morte.
7. Os que não acreditam que isso poderia acontecer, somente têm em conta o costume da natureza que segue o processo atual depois do pecado e do castigo do homem. Não nos devemos colocar entre aqueles que não creem senão no que estão acostumados a ver. De fato, há quem duvide que podia ser oferecido ao homem que vive obediente e piedoso o que dissemos, se ele não duvida que foi concedido às vestes dos israelitas uma certa propriedade de não deterioração, de modo que não se envelheceram durante quarenta anos13?
Razão da criação da mulher: a procriação da espécie
9. Se a mulher não foi criada para o homem como auxiliar para gerar filhos, para que, então, foi criada? Se foi para trabalharem juntos a terra, ainda não havia trabalho que justificasse a necessidade de uma auxiliar; e se houvesse, melhor o faria um auxiliar do sexo masculino. Isso se pode dizer também a respeito da necessidade de conforto, se por acaso o homem se entediasse com a solidão. Com efeito, quanto mais apropriado é para a convivência e a conversação a existência de dois amigos do que a de um homem e de uma mulher? E se era necessário que um mandasse e o outro obedecesse para viverem juntos, para que vontades contrárias não viessem perturbar a paz dos co-habitantes, não faltaria a ordem a ser observada, tendo em vista que um seria criado em primeiro lugar e o outro, depois; principalmente, se o posterior fosse criado do primeiro, tal como Eva foi criada. Ou alguém dirá que Deus, que fez a mulher de uma costela do homem, não poderia fazer também um homem, se quisesse? Portanto, não descubro para que a mulher foi feita para o homem como auxiliar, se se prescinde do motivo de dar à luz.
12. Não percebo outra razão pela qual a mulher foi criada para ser auxiliar do homem, se se elimina a finalidade da procriação, e esta não vejo por que se há de eliminar. De onde procede para a fiel e piedosa virgindade o grande mérito e merecedor de grande honra junto de Deus, senão porque nestes tempos os que se abstêm do comércio carnal são supridos pela enorme abundância de pessoas de todos os povos que completam o número de santos, e porque o desejo de sentir o prazer sórdido não reclama o que a necessidade de uma prole suficiente não exige? Finalmente, a fraqueza dos dois sexos, com tendência à ruína da pureza, é amparada devidamente pela honestidade do casamento, a fim de que o que pode ser obrigação para os sãos, seja remédio para os fracos. Não é porque a incontinência seja um mal que o casamento pelo qual se unem os incontinentes não é bom. Pelo contrário, este é bom não por causa daquele mal culpável, mas aquele mal é venial por causa deste bem; pois o casamento pelo bem, que implica e pelo que é bom, nunca pode ser pecado. Os bens do casamento são três: a fidelidade, a prole, o sacramento. Pela fidelidade, cuida-se de não haver comércio carnal com outra ou com outro fora do vínculo conjugal; pela prole, para ser recebida com amor, nutrida com solicitude e educada religiosamente; e pelo sacramento, para que não se desfaça a união, e o repudiado ou a repudiada não se case com outro ou com outra nem mesmo tendo em vista uma prole. Esta é como que a regra do casamento, pela qual se orna a fecundidade da natureza, ou se corrige a deformidade da incontinência. Pelo fato de termos dissertado bastante no livro que há pouco editamos sobre "O bem do Matrimônio", onde mostramos a diferença entre a continência da viuvez e a excelência da virgindade de acordo com dignidade de seus graus, não vamos ocupar nossa pena por mais tempo.
O sexo feminino foi formado para a procriação, mas, antes do pecado, sem
concupiscência — A obediência
19. Quem duvidar que a mulher foi criada para o homem e do homem, com o sexo, a forma e a diferença de órgãos, pela quais se conhecem as mulheres, aquela que deu à luz a Caim e a Abel e a todos seus irmãos, dos quais nasceriam todos os homens, entre os quais deu também à luz a Set, pelo qual se chegou a Abraão26 e ao povo de Israel e a toda a sua descendência já conhecidíssima de todos os povos, e pelos filhos de Noé se chegou a todas as nações, quem duvidar, repito, obriga a que se duvide de tudo em que cremos e essa dúvida deve ser repelida para longe das mentes dos fiéis. Portanto, quando se pergunta para que ajuda o sexo feminino que foi criado para o homem, considerando todas as coisas com muita atenção, não me ocorre a não ser a finalidade da prole, para que se enchesse a terra mediante a descendência deles. Mas descendência procriada não com o mesmo processo com que agora os homens são procriados, visto que a lei contrária à lei do espírito está inserida nos membros, embora se possa superá-la mediante a virtude pela graça de Deus, pois se há de crer que isso não pôde acontecer senão no corpo desta morte, corpo que morreu devido ao pecado. E o que há mais justo do que este castigo pelo qual o corpo, ou seja, o servo da alma, não a serve conforme seu desejo, assim como ela recusou servir a seu Senhor? Que Deus crie a ambos os pais, ou o corpo do corpo, ou a alma da alma, ou crie de outro modo, não cria certamente para uma obra impossível nem digna de pequena recompensa, de modo que, quando a alma, submetida pela piedade a Deus, vencer esta lei do pecado que está nos membros do corpo desta morte, que o primeiro homem recebeu em castigo, receberá o prêmio celeste com a maior glória, mostrando quão grande é a recompensa da obediência, ela que conseguiu vencer pela virtude o castigo imposto à desobediência alheia.
3) Suma Teológica: Ia, q. 92: Da Produção da Mulher (S. Tomás de Aquino)
Era necessário que a
mulher fosse feita para adjutório do homem. Não, certo, adjutório para
qualquer outra obra, como alguns disseram; pois, nisso o homem pode ser
ajudado, mais convenientemente, por outro homem, do que pela mulher; mas
para o adjutório da geração. O que se pode compreender mais
manifestamente, se se considerar o modo da geração, nos seres vivos. –
Assim, certos têm conjuntamente 1) virtude da geração ativa e passiva,
como acontece com as plantas, geradas da semente; pois, não há nelas
nenhuma operação vital mais nobre que a geração e, por isso, a todo
tempo e convenientemente, nelas, a virtude geratriz ativa vai junta com a
passiva. – Porém os animais perfeitos têm a virtude gera triz ativa, no
sexo masculino, e a passiva, no feminino. E como eles são capazes de
alguma operação vital mais nobre que a geração, para cuja operação a
vida se lhes ordena principalmente, por isso, o sexo masculino não se
une com o feminino a todo o tempo, mas só no do coito. E assim podemos
pensar que, pelo coito, constituem um só ser o macho e a fêmea, como na
planta, a todo tempo, conjugam–se as virtudes masculina e feminina,
embora em umas abunde mais uma dessas virtudes, e, noutras, a outra. –
Ora, o homem se ordena a uma operação vital mais nobre, que é o
inteligir. E por isso ne]e, com maior razão, devia haver a distinção
entre uma e outra virtude, de modo que a fêmea fosse produzida
separadamente do macho; e contudo, ambos se unissem, carnalmente, para a
obra da geração. Por onde, logo depois da formação da mulher, diz a
Escritura: Serão dois numa só carne.
Na sua natureza
particular, a fêmea é um ser deficiente e falho. Porque a virtude ativa,
que está no sémen do macho, tende a produzir um ser perfeito semelhante
a si, do sexo masculino. Há dupla sujeição.
Uma servil, pela qual o superior usa do súdito, em sua utilidade, e essa
sujeição foi introduzida depois do pecado. Outra é a sujeição econômica
ou civil, pela qual o chefe usa dos súditos para o bem destes: e tal
sujeição já existia antes do pecado. Pois faltaria o bem da ordem, na
sociedade humana, se uns não fossem governados por outros, mais sábios. E
assim, por essa sujeição, é que a mulher é naturalmente dependente do
homem; porque este tem naturalmente maior discreção racional.
Foi conveniente na
primeira instituição das coisas, a mulher, diferentemente dos brutos,
ser formada do varão. – Primeiro, para que, assim, se conferisse a este
uma certa dignidade; de modo que, semelhantemente a Deus, também ele
fosse o princípio de toda a sua espécie, assim como Deus é o princípio
de todo o universo. Por isso a Escritura diz, que De um só Deus fez todo
o gênero humano. Segundo, para que o homem amasse mais a mulher e mais
inseparavelmente se lhe unisse, quando soubesse que de si mesmo foi ela
produzida. – E por isso diz a Escritura: De varão foi tomada: por isso
deixará o homem a seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, – O que
era sumamente necessário, na espécie humana, na qual o homem e a mulher
permanecem unidos por toda a vida; o que não se dá com os brutos. –
Terceiro, porque, como diz o Filósofo, na espécie humana, o varão e a
mulher unem–se, não só pela necessidade da geração, como os brutos, mas
também para a vida doméstica, na qual há uns atos próprios ao homem e
outros, à mulher, sendo aquele a cabeça desta, Por onde
convenientemente, a mulher foi formada do homem, como do seu princípio. A
quarta razão, enfim, é sacramental. Pois, com essa formação está
figurado que a Igreja tira de Cristo o seu princípio. Por isso diz a
Escritura: Este sacramento é grande, mas eu digo em Cristo e na Igreja.
Matéria é aquilo de
que alguma cousa se faz. Ora, natureza criada tem um determinado
princípio; e como é determinada a um termo, também tem um determinado
processo; por isso de determinada matéria, produz algo especificamente
determinado. Mas, o poder divino, sendo infinito, pode fazer um mesmo
ser, especificamente, de qualquer matéria; assim, o homem, do limo da
terra, e a mulher, do homem. Pela geração natural
se contrai um certo parentesco, que impede o matrimônio. Ora, a mulher
não foi produzida, do homem, por geração natural, mas pela só virtude
divina; por isso Eva não é chamada filha de Adão.
Era conveniente que a mulher fosse formada da costela do homem. – Primeiro, para significar que deve haver união entre o homem e a mulher. Pois, nem esta deve dominar aquele e, por isso, não foi formada da cabeça; nem deve ser desprezada pelo homem, numa como sujeição servil, c por isso não foi formada dos pés. – Segundo, por causa do sacramento; porque, – do lado de Cristo, dormindo na cruz, fluíram os sacramentos, isto é, o sangue e a água, com os quais foi a Igreja instituída. A referida costela era da perfeição de Adão, considerado este, não como indivíduo, mas como princípio da espécie; assim como o sémen, que pertence à perfeição do gerador, põe–se em liberdade, com deleite, por operação natural. Por onde, com muito maior razão, o–corpo da mulher podia ter sido formado, pela virtude divina, da costela do homem, sem dor.