O CLERO COVARDE E INTERESSEIRO

02/12/2023

Fonte: "As Cartas" de S. Catarina de Sena [Carta ao Cardeal Pedro d'Estaing]


Em nome de Jesus Cristo crucificado e da amável Maria, caríssimo e reverendíssimo pai[1] no bondoso Cristo Jesus, eu Catarina, serva e escrava dos servos de Jesus Cristo, vos escrevo no seu precioso sangue, desejosa de vos ver homem viril, sem medo no serviço da Esposa de Cristo, no trabalho espiritual e material conforme as necessidades atuais da Igreja.

Estou segura de que vós, ao tomardes conhecimento dessas necessidades, fareis tudo com empenho, sem medo e demoras. Quando alguém sente medo por interesses pessoais, nenhuma ação sua é perfeita. Seja qual for sua posição social, sua atividade falha nas pequenas e nas grandes coisas. Nada atinge a perfeição naquilo que faz. Como é nocivo o temor interesseiro! Ele inutiliza o desejo santo, cega a alma, impedindo-a de conhecer a verdade. Realmente, do medo interesseiro procede a cegueira egoísta. Todos os egoístas são medrosos. Por quê? Porque depositam sua afeição e esperança numa realidade débil, sem firmeza, instável, passageira como o vento.

Ó perverso amor (egoísta), como és prejudicial aos governantes eclesiásticos e aos (seus) súditos! Se é um prelado, teme perder a prelatura, teme desgostar os súditos; se é súdito, jamais obedece, porque não existe humildade na pessoa tímida por interesses, cheia de soberba. Se for um governante temporal, não pratica a justiça; apenas injustiças maldosas e falsas, de acordo com seus interesses pessoais e humanos. Sem a correção e a justiça, os súditos ficam piores, cheios de vícios e maldade. Como é prejudicial o egoísmo associado ao medo desordenado.

É preciso evitar o medo interesseiro, fixando o olhar do pensamento no Cordeiro sem mancha, norma e verdade que devemos seguir. Jesus é o amor e a verdade. Ele só procurou a glória do Pai e a nossa salvação. Cristo não temia os judeus com sua maldade, nem os demônios, nem o descrédito, as caçoadas, as palavras ofensivas. No final, não teve medo da humilhante morte na cruz. Sejamos discípulos nessa doce e suave escola. Com semelhante luz, despojar-vos-eis do amor próprio e vos revestireis de amor divino; procurareis a Deus por causa de sua infinita bondade e porque ele merece que o procuremos e amemos; possuireis um amor reto por vós mesmo e pela virtude; odiareis o vício por amor a Deus; e com tal amor amareis o próximo. 

Sabeis perfeitamente que Deus vos pôs na hierarquia da santa Igreja, vossa mãe nutriz, para que nela procureis a glória divina e a salvação das almas. Deus quer que vos alimenteis na mesa da cruz, suportando fadigas corporais e tendo grandes desejos, à semelhança do Filho de Deus, que ao mesmo tempo padecia tormentos físicos e nutria grandes aspirações. Em Jesus, aliás, maior era a cruz do desejo que a cruz do sofrimento físico. E que desejava ele? Nossa redenção e o cumprimento da vontade do Pai eterno. Por isso Jesus padeceu até que tudo se consumasse (Lc 12,50). Sendo ele a sabedoria do Pai eterno, sabia quem tomaria parte no seu sangue e quem não, devido aos próprios pecados. Seu sangue era oferecido a todos e Cristo sofria pela maldade dos que um dia recusariam tal participação. 

Do começo ao fim, Jesus trouxe consigo esse desejo cruciante. Depois da ressurreição, o caráter cruciante cessou, mas o desejo, não. Eis a maneira como deveis agir, vós e qualquer outra pessoa: assumir a fadiga do corpo e a fadiga do desejo; sofrer porque Deus é ofendido; sofrer porque muitos se condenam, como podemos ver.

Caríssimo pai, penso que chegou o tempo de se dar glória a Deus e de se fatigar pelo próximo. Não é mais hora de permanecer no egoísmo e no temor interesseiro, mas sim de trabalhar com amor e santo temor de Deus. Vós governais temporal e eclesiasticamente. Rogo-vos, por amor de Cristo, que o façais virilmente. Na medida do possível, procurai a glória divina, aconselhando e auxiliando as pessoas, para que os vícios desapareçam e as virtudes sejam promovidas. Agi virilmente nos assuntos temporais, que na intenção são espirituais. Quanto puderdes, promovei a paz e a união de toda a Itália. Como é tenebroso pensar que estamos em guerra contra Deus, através dos pecados de súditos e pastores; que há rebelião contra a santa Igreja[2] e até batalhas.

No que se refere à guerra, todos os cristãos deveriam unir-se para ir lutar contra os infiéis e os hereges; mas eles preferem lutar uns contra os outros. Por tudo isso, os servidores de Deus explodem de dor e amargura, vendo a grande ofensa feita a Deus e a condenação de pessoas que morrem nas batalhas. Quem se alegra são os demônios, contentes por ver o que desejam.

Que boa coisa seria darmos a vida como o Mestre, despreocupados das honras, ofensas, sofrimentos e até a morte que a sociedade nos quisesse dar. Pessoalmente eu acho que vós, revestido do homem novo e despojado do homem velho da sensualidade, agireis assim, sem qualquer temor interesseiro. Caso contrário, nada realizareis e até incidireis nos defeitos acenados.

Penso que deveis ser um homem viril, sem temores, sem egoísmo. O cargo que ocupais somente aceita o temor santo. Por tal razão eu dizia, no começo da carta, que estava desejosa de vos ver homem viril, sem medo. Espero que Deus conceda a vós e a mim a graça de cumprir sua vontade, vosso desejo e também o meu. Paz, paz, paz, caríssimo pai! Vós, e os demais cardeais, fazei ao Santo Padre (Gregório XI) ver que a perda das almas conta mais do que a perda de cidades. Deus quer mais as almas que as cidades. Nada mais acrescento. Permanecei no santo e doce amor de Deus. Jesus doce, Jesus amor.

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