A Renascença e o paganismo CONDENADOS por São Jerônimo e Santo Agostinho
SÃO JERÔNIMO
«Não ouvis o grande Paulo que vos diz noutros termos : Não vos firmeis no estudo dos filósofos, nem oradores, nem poetas pagãos. É crime beber ao mesmo tempo no cálice de Cristo e no dos demônios». Noutros termos; são incompatíveis o cristianismo e o paganismo: um é o sensualismo, outro o espiritualismo. «Eu mesmo, diz ele neutra parte, quis fazer essa perigosa experiência, e amargos foram os frutos que dela colhi. Havia anos que eu tinha deixado a casa paterna, privando-me da sociedade de meus pais, minha irmã e meus amigos; e, o que é mais difícil, tinha renunciado ao uso dos alimentos delicados; tudo com vistas de ganhar o céu. Tencionando ir a Jerusalém, para combater nos combates do Senhor, não podia passar sem a biblioteca que em Roma compusera com extremo cuidado e trabalho infinito. Assim, desgraçado de mim! deixava tudo, jejuava para ler Cicero.
Depois de frequentes vigílias, e abundantes lagrimas por minhas culpas passadas, pegava em Plauto. Se, às vezes, tornando a mim, tentava ler os profetas, horrorizava-me o seu estilo inculto; e como os meus olhos enfermos não viam a luz, julgava que a falta era do sol. «Em tanto que eu era assim o joguete da antiga serpente, fui de repente levado em espirito ao tribunal do soberano juiz. Tal era o resplendor da luz que brilhava na sua pessoa e na dos anjos que o rodeavam, que fiquei prostrado sem ousar erguer os olhos. Interrogado sobre a minha condição, respondi que era cristão. Mentes, replicou o Juiz; tu és ciceroniano, e não cristão; porque onde tens o teu tesouro, tens o teu coração. A estas palavras calei-me, e o Juiz mandou-me açoutar, e os açoutes que eu recebia me eram menos cruéis que os remorsos que rasgavam a minha consciência, Lembrei-me desta palavra do profeta: Quem vos poderá louvar no inferno? Contudo comecei a exclamar e a dizer, soluçando: Senhor, tende piedade de mim. Enfim, o» que ladeavam o tribunal, lançaram-se aos pés do juiz e pediram-lhe compaixão para a minha mocidade e tempo para fazer penitencia, dizendo-lhe que eu me emendaria.
Eu, também, n'esta extremidade, fazia ainda maiores promessas; jurei, invocando o nome de Deus, que queria ser tido como apostata, se me acontecesse algum dia guardar livros pagãos. «Pronunciado este juramento, soltaram-me e eu vim a mim. Com grande espanto dos circunstantes, tinha os olhos tão cheios de lagrimas que todos se convenceram da violência da dor que sofrera. Não foi sono, ou vão sonho, como os que nos iludem ás vezes. Tomo por testemunhas aquele tribunal ante o qual estive, e a formidável sentença que me gelou de medo. Por isso nunca mais quererei expor-me a tal questão, em que fiquei com as costas mortificadas pelos açoutes, que, por muito tempo, me doeram, e depois da qual estudei as Escrituras com o fervor com que estudara os livros pagãos.» O santo doutor foi fiel ao juramento. Não só deixou de ler autores pagãos, mas até receava citar passagens deles, que lhe vinham a memória. Aos que lhe diziam, como se diz hoje, que, sem esses livros, não se pôde falar nem escrever bem, respondia: «O que vós admirais, desprezo-o eu, porque tenho gostado da loucura de Jesus Cristo, e a loucura de Jesus Cristo é mais sábia que toda a sabedoria humana».[1]
SANTO AGOSTINHO DE HIPONA
Ouçamos agora Santo Agostinho. Nenhum Padre da Igreja foi tão perseverante em combater o deplorável uso dos clássicos pagãos, como este admirável doutor, cujo coração, tão belo como o seu gênio, queria preservar a infância dum perigo, que a ele próprio perdera. Começa por indicar o motivo pelo qual seus pais lhe faziam estudar os autores pagãos: é exatamente o mesmo que se apresenta hoje. Diziam-me, escreveu ele: — ali é que se aprende a bela linguagem; ali é que se estuda a eloquência tão necessária para expormos vitoriosamente o nosso pensamento» Ora ele mostra por um exemplo, não só a frivolidade, mas ainda o perigo de tal motivo. «Pois nós não conheceríamos as palavras, chuva de ouro, regaço, disfarce, se Terêncio não falasse dum devasso, tomando Jupiter para modelo duma infâmia? Não: não é lendo esta torpeza que nós aprendemos tais palavras, mas com estas palavras aprenderemos a cometer com despejo esta torpeza».
Depois, indignado, exclama: «Maldita sejas, torrente do costume! Quem obstará aos teus estragos? Quando secarás tu? Até quando arrastarás tu os filhos de Eva, por esse mar imenso, formidável, que poucos atravessam? Não é a bela ciência da fabula, que nos mostra um Jupiter tonante e adultero? É uma ficção! exclamam todos os mestres. Seja, mas essa ficção faz que os crimes não sejam crimes, e que quem cometer tais infâmias, pareça imitar, não homens perversos, mas deuses imortais. « E, contudo, ó rio infernal! é pelo atrativo das recompensas que se embarcam os filhos dos homens sobre a corrente das tuas águas, para aprenderem essas cousas! Eu não acuso as palavras, que são vasos preciosos e inocentes, mas sim o vinho do erro e do vicio que neles nos davam mestres embriagados; e, se nós não bebêssemos, éramos açoutados sem podermos apelar para um juiz sóbrio...; e, como eu aprendia essas cousas com prazer, diziam que eu dava grandes esperanças.»
O próprio Virgilio, o mais casto de todos os poetas latinos, fez feridas na sua alma. «Eu aprendi, ao estudá-lo, diz ele, bastantes palavras úteis, que também teria aprendo, lendo cousas menos vãs; mas também aprendi as aventuras de não sei que Enéas, e esquecia os meus próprios erros. Aprendi a chorar por Dido, que se matara por ter amado demasiado; e eu não tinha uma lágrima para mim, que achava a morte nessas leituras. Que deplorável endurecimento! Se me queriam privar d'essa leitura, eu chorava por não ter nada que chorar; e a uma tal demência é que se chama belas-letras (*)!»
E vós, mestres profanos, regentes, que, ainda hoje, fazeis uma cousa capital do estudo disso que chamais a bela latinidade; que não receais propor como modelo, Catullo, Horácio, Terêncio bem mais perigoso que Virgílio, que alcunhais de bárbaro tudo o que não traz o selo da sua linguagem, escutai como Santo Agostinho julga a vossa consulta: «Faziam-me olhar como cousa capital, a que me obrigavam a aplicar-me com a esperança de recompensas ou com o receio de castigos, o aprender as palavras cheias de dor e cólera de Juno, que não podia impedir Enéas de chegar à Itália. Obrigavam-nos a dizer em prosa algumas das cousas que o poeta tinha dito em verso; e o mais aplaudido era o que melhor representasse a ira da deusa imaginaria. Vede, Senhor Deus, vede a importância que ligam os filhos dos homens a silabas e letras, esquecendo os vossos preceitos! Mais depressa culparão quem não tiver pronunciado bem uma palavra, do que quem tiver infringido a vossa lei! Será para admirar que todas estas vaidades me apartassem de vós, meu Deus, quando me apresentavam homens que eram mentidos a ridículo se, ao contar as suas ações, usassem dum barbarismo ou dum solecismo; e que eram cobertos de elogios se tinham o talento de contar as suas infâmias com estilo correto e elegante?» Que frutos tirou o jovem Agostinho desta educação pagã, tão semelhante à nossa? Os que devia tirar e se tirarão sempre: o predomínio do sensualismo, o enfraquecimento do espiritualismo; noutros termos, a imoralidade antecipada e o aborrecimento das cousas de Deus. «Quando tive mais idade, diz ele mesmo, quiz ler as Escrituras. Mas não era capaz de penetrar-lhes o sentido; o meu orgulho recusava aceitar as suas lições. O estilo, a ideia, tudo me parecia indigno de comparar-se a majestade de Cicero. O soberbo do meu espirito não podia suportar a sua linguagem; a minha vista não penetrava a profundidade de seus pensamentos. A sabedoria que se faz ouvir nela é a que se dá l) em com as crianças, e eu não queria ser criança, porque, cheio de mim, julgava-me alguma cousa grande».
A história de Agostinho é, mais ou menos, a história de todos os mancebos; a história do seu coração é a história do coração humano. Não nos devemos, pois, admirar de ouvir este grande homem clamar a todos os séculos: a Instruir a infância com livros pagãos, é ensinar-lhes inutilidades, é roubá-los de Deus, é entregá-los ao demônio. O que é tudo isso, senão vento e fumo? Não há outro meio de cultivar o espirito e adquirir eloquência? Os vossos louvores, Senhor, tão eloquentemente cantados na Sagrada Escritura, teriam elevado o meu fraco coração, e não o teriam deixado ser preza das garras de impuras aves. Ah! há mais do que um meio para sacrificar os homens ao demônio.... É assim que convém educar a mocidade? São esses os modelos que se lhe devem apresentar? Fazendo assim, não são aves, nem animais, nem mesmo sangue humano que vós ofertais; mas, o que é bem mais abominável ainda, é a inocência da juventude que vós imorais sobre os altares de Satanás (2)».
Depois, vendo a triste condição da infância, roubada tão cedo a Deus, começa a chorar e exclama: «Vós vedes isto, Senhor, e calais-vos, vós que sois todo bondade, misericórdia e verdade! Mas, calar-vos-eis sempre? Não retirareis do abismo almas feitas para vós e sedentas do vosso amor»? Acrescentaremos que um dos maiores pesares deste grande santo foi ter ele mesmo ensinado a retórica pelo método pagão, corrompendo e materializando o espirito de seus discípulos.[2]
[1] SÃO JERÔNIMO, Ad Eustocli., De custod. virginità, ep. xvin, opp., t. IV, p. 43. Citado em: O Verme Roedor de Mons. Gaume, cap. VIII, p. 88-90.
[2] SANTO AGOSTINHO. Confissões, Livro V; Epist. Ad Nectarium; Epist. Lib. XI, ep. 54, opp., t. III, p. 1171. Citado por Mons. Gaume (O Verme Roedor, p. 93-96).